Sujo e gostoso
No lugar mais improvável, no restaurante mais imundo do planeta, uma refeição inesquecível
A cidade de Massawa fica à beira do mar Vermelho. É, de acordo com o Lonely Planet, um dos lugares mais quentes do planeta. Antes que alguém atire a primeira pedra, concordo que isso não quer dizer nada. Em cada país na altura da linha do Equador sempre há um lugar considerado “o mais quente do planeta”. As reentrâncias e saliências da vida me levam a lugares distantes. Sejam quentes ou frios, não reclamo.
Tenho o maior prazer em viajar, mas, confesso, tenho problemas em me alimentar quando ando perdido por paralelos e meridianos desconhecidos. Meu apetite desaparece por completo se meus sentidos não detectam na comida as formas, cores ou cheiros que me são familiares. Se a vida me faz correr profissionalmente alguns riscos, de vez em quando a frescura de meu estômago não deixa que me aventure por horizontes gastronômicos estranhos.
No caso de Massawa, por exemplo, aquela noite quente era a quinta que passava no país (Eritreia) e, desde minha chegada, só tinha conseguido me alimentar de biscoitinhos de água e sal. Em cada viagem destas chega um momento em que o corpo, por mais que a mente se recuse, precisa parar de ser enganado e se alimentar de verdade. E aquela noite era meu limite. Pedi para o guia me levar ao melhor restaurante da cidade. Ele dirigiu o carro entre ruas escuras com casas de arquitetura otomana ainda cicatrizadas por rajadas de metralhadoras da guerra não muito distante. Finalmente puxou o freio de mão numa pracinha escura, onde duas casas estavam iluminadas. A primeira era uma farmácia, a outra, um restaurante. As luzes do restaurante eram azuladas, com um neon que desenhava seu nome: Sellam. Algumas mesas e cadeiras de plástico sujas estavam espalhadas na frente. Um gato em cima de uma cadeira, com as patas sobre a mesa, lambia com muita calma os restos da comida de algum cliente. No interior não havia móveis, apenas um balcão com uma caixa registradora, um freezer e o vão da porta – sem porta – que dava para a cozinha. Cumprimentei algumas pessoas sem saber, exatamente, quem era cliente, dono, garçom ou mendigo.
O único que exibia a profissão era o cozinheiro. Estava perto do fogo, de turbante e um sorriso mefistofélico no rosto. Usava um pedaço de ferro retorcido em forma de gancho para enfiar peixes cortados ao meio entre as labaredas de um fogão. Os gestos eram rápidos, metódicos, profissionais. Punha a carne branca na chapa quente de azulejo do fogão e deixava a pele esturricar até ficar uma crosta dura. O chão e as paredes do lugar eram imundos.
O melhor do mundo
Para encurtar a conversa: escolhi no freezer uma dourada, pescada horas antes no mar Vermelho. Pronta, foi servida em um prato de plástico descartável, acompanhada de um pedaço de pão e um molho indecifrável. Como era forasteiro recebi, em caráter excepcional, um pedaço de papel higiênico para usar como guardanapo. Em Massawa as pessoas comem com extrema habilidade utilizando apenas a mão direita, nada de talheres. E, como para eles eu era um infiel, tive a permissão de comprar na farmácia uma lata de cerveja chinesa. Tudo consumido na mesma mesa em que o gato tinha jantado minutos antes. O felino me olhava, do chão, entre meus pés, na expectativa de repetir a dose. Pobre gato, não deixei muita coisa no prato.
Confesso que foi o melhor peixe que já comi na vida. Antes que algum engraçadinho fale que gostei porque há tempos estava de estômago vazio, digo que voltei no dia seguinte, de barriga cheia, e repeti a dose. O Sellam, de Massawa, pode ser o restaurante mais sujo do planeta. Mas, posso jurar, é também um dos melhores e mais honestos.
*J. R. Duran, 55, é fotógrafo e escritor. Seu e-mail é studio@jrduran.com.br