Stand up & fight
Amendoim, pioneiro do stand up no Brasil, atravessa as águas sujas do rio Pinheiros
O rio Pinheiros já foi limpo, caudaloso e navegável. Num dos momentos mais graves de escassez hídrica da história de São Paulo, a Trip se uniu ao pioneiro do stand up paddle no Brasil Alessandro Matero, o Amendoim, em uma forma inusitada (e arriscada) de alerta: de pé, sobre sua prancha, atravessar as águas sujas e mortas do rio que corta a maior cidade do País.
São Paulo abriga sob suas movimentadas ruas cerca de 300 córregos e afluentes de seus principais rios. Escondidos e soterrados, eles perderam a briga para o concreto, para carros, ônibus e todo o cinza do desenvolvimento urbano. Em um dos poucos rios que ainda não foram engolidos, a poluição leva a melhor. Repleto de esgoto e dejetos em seus 25 quilômetros de extensão, o rio Pinheiros foi o cenário escolhido por Alessandro Matero para chamar a atenção para o problema que corre ao lado de milhares de pessoas todos os dias.
Amendoim, como é conhecido, pratica stand up paddle desde 2007, quando entrou em contato com o esporte em uma viagem ao Havaí. No arquipélago, fez travessias impressionantes entre duas de suas ilhas, Molokai e Oahu. Mas nada tão inusitado quanto remar por 30 minutos e 3 quilômetros sobre as águas do rio Pinheiros, que corta o coração de uma das regiões mais urbanizadas da capital paulista.
"Mesmo usando proteção, a poluição química é assustadoramente forte. Cada córrego que desaguava no rio mais sujeira trazia, e mais difícil era respirar"
Para a empreitada, Amendoim usou uma roupa chamada EPI, Equipamento de Proteção Individual, que mais parece saída de um filme de ficção científica. “Mesmo usando proteção, a poluição química é assustadoramente forte”, conta. “Cada córrego que desaguava no rio mais sujeira trazia, e mais difícil era respirar.”
O que ficou após a experiência foi o inconformismo. “Não é possível que ninguém faça nada para mudar essa situação. O potencial que existe, para transporte, práticas esportivas e lazer, é imenso. As pessoas que passam ali todos os dias parecem não ver isso, não enxergam mais o rio como um rio.” É como se fosse um objeto.
TÃO LONGE, TÃO PERTO
A dificuldade em notar a existência da água tão próxima é ainda maior quando pensamos na quantidade de rios que correm por baixo das ruas.
Stela Goldenstein, diretora executiva da organização não governamental Águas Claras do Rio Pinheiros, que atua há cinco anos com projetos para revitalizar o rio, explica as consequências de esconder as águas naturais da região.
“Com os rios canalizados e enterrados, a limpeza é muito mais difícil”, diz. Além disso, as prefeituras ainda têm serviços muito precários de varrição e coleta de lixo, “e muitas pessoas deixam lixo na rua, seja jogado mesmo, seja com a expectativa de que o caminhão da prefeitura venha antes das chuvas”. O resultado é um universo de dejetos indo parar nos córregos, assoreando e reduzindo a capacidade de receber as chuvas, tornando alagamentos cada vez mais frequentes.
Em relação ao rio Pinheiros, investigado por Amendoim nesta reportagem, um dos tipos de poluição que predominam é a chamada difusa, originada dos dejetos levados ao rio pela chuva. Alexandre Delijaicov, professor doutor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, explica em que consiste essa poluição: “Nos primeiros 10 minutos de chuva, depois de uma estiagem muito longa, desce uma verdadeira pasta em direção ao canal principal do rio. Essa pasta é uma mistura de galhos, sujeira da rua, mas parte significativa vem dos escapamentos dos automóveis. Nosso óleo diesel é extremamente cancerígeno”.
O projeto Hidroanel busca criar uma rede de vias navegáveis na cidade, uma orla fluvial de cerca de 500 quilômetros
Delijaicov é um dos coordenadores do grupo Metrópole Fluvial, pertencente ao Laboratório de Projeto da FAU-USP. O grupo é responsável pelo projeto Hidroanel Metropolitano de São Paulo, cujo objetivo é aproveitar todo o potencial hidroviário que a cidade possui, formando uma rede de vias navegáveis composta pelos rios Tietê e Pinheiros e pelas represas Billings e Taiaçupeba, além de um canal artificial ligando essas represas, totalizando 170 quilômetros de hidrovias urbanas. Qual o primeiro passo? “Colocar os barcos de turismo e lazer fluvial pra circular na água. Na água do jeito que está hoje. Se olharmos de frente para o problema, todo mundo vai se interessar pela causa, afinal o que está sendo proposto é uma orla fluvial de quase 500 quilômetros.”
RIO NAVEGÁVEL
O projeto conta com um barco abre-alas que funciona como um limpador de piscina. “Na proa fica uma escumadeira para remover o que está flutuando, com trompas que limpam o fundo do canal. E, atrás desse barco, vêm os cargueiros, de turismo, lazer e transporte.” Com os barcos navegando, até mesmo os fortes odores que emanam do rio seriam amenizados. “Para isso, seria necessário ter esses barcos circulando em mão dupla, se cruzando a cada 10 minutos, como em uma ciranda, e haver a cada quatro ou cinco deles, um barco limpador”, explica.
No Pinheiros, como afirma também Stela Goldenstein, existem, sim, diferentes formas de suas águas conviverem com o avanço urbano. “Mas para isso é necessário tempo, dinheiro e interesse por parte do governo.”
"Muitas cidades da Europa e dos Estados Unidos já tiveram rios inóspitos que hoje estão recuperados"
Stela, que já atuou na Secretaria Estadual do Meio Ambiente de São Paulo até 1999, e na municipal até 2002, afirma que medidas como coletar lixo e garantir água limpa nos córregos que desembocam no rio, somadas a técnicas de drenagem e limpeza, podem torná-lo limpo novamente. E essa não é uma ideia utópica. “Muitas cidades da Europa e dos Estados Unidos já tiveram rios inóspitos que hoje estão recuperados.” Nem precisa ir tão longe: em Sorocaba, cidade do interior paulista, medidas como essas foram feitas, em conjunto com um programa de tolerância zero para ocupações irregulares. Os rios da cidade foram recuperados, voltando a ter suas águas limpas da poluição, conforme conta a diretora.
A escassez hídrica que estamos vivendo acendeu todos os sinais de alerta para a urgência do problema. Stela comenta que “a população está mais atenta. A crise da água chamou a atenção para que sociedade e governo se organizem”.
Voltar os olhos para os rios das cidades não implica somente uma melhora na paisagem cinza e suja, mas também lazer e bem-estar para os moradores. “O ganho de qualidade de vida para a população é imenso”, diz.
Tem jeito?
Para a Organizaçao Águas Claras do Rio Pinheiros, fundada em 2009, sim: Por meio de parcerias entre a sociedade e o governo, dá para trabalhar pela recuperação do rio
Entre os muitos rios da metrópole paulista, o rio Pinheiros talvez seja aquele com o qual a população mais conviveu intimamente até poucas décadas atrás. Aproveitado por clubes esportivos que estavam situados em seu entorno, o rio era local de lazer e de inúmeras competições.
As grandes transformações vividas por esse rio tiveram início na década de 30, quando grandes obras foram realizadas para permitir a retificação de seus meandros e a drenagem de seus brejos. Com a instalação de barragens e de bombas, o curso do rio Pinheiros passou a ser revertido, deixando de correr na direção de sua foz original no rio Tietê e passando a alimentar a represa Billings com suas águas e também com parte das águas do próprio rio Tietê.
A partir de 1940, as áreas de entorno do rio, que eram inundadas a cada chuva, foram urbanizadas e ocupadas. Essas obras, junto com a construção de vias expressas de tráfego, fizeram com que o rio Pinheiros se isolasse do cotidiano das pessoas antes mesmo de suas águas estarem contaminadas pela poluição. A expansão urbana deu-se sem a necessária infraestrutura sanitária, sem o controle dos efluentes domésticos e industriais, e com precários serviços de gestão de resíduos. Foi dessa maneira que o mesmo rio utilizado pelos atletas foi se transformando em um dos grandes problemas ambientais que a maior cidade do país enfrentaria durante as próximas décadas.
Atualmente, a poluição do rio Pinheiros é atribuída à alta carga de esgoto recebida por seus afluentes e à poluição difusa causada pelo carreamento de substâncias oriundas da má varrição de rua, lixo não recolhido, entulho, poluição do ar que se deposita no solo e de vazamentos ocasionais que atingem os recursos hídricos superficiais e/ou subterrâneos. Somente a poluição oriunda do lançamento de efluentes industriais passou a ser controlada após o lançamento de fortes campanhas de fiscalização e de ações punitivas por parte da Cetesb entre as décadas de 70 e 80.
A grande dificuldade em se minimizar a poluição do rio Pinheiros e de seus afluentes está centrada em duas principais esferas de atuação: a técnica (há, por exemplo, uma dificuldade de implantar infraestrutura de saneamento ambiental em áreas irregulares do rio) e a política (já que recuperar rios e mananciais nunca foi prioridade de nenhum governo). Mas nem tudo está perdido – pelo menos no que depender de iniciativas que partem da própria sociedade.
Uma delas é o trabalho que a organização Águas Claras do Rio Pinheiros fez em parceria com a Secretaria do Meio Ambiente do estado de São Paulo no final de 2013. Seis empresas foram selecionadas para testar alternativas tecnológicas que possam ajudar na despoluição do rio. As técnicas vão de flotagem ao uso de bactérias que neutralizam a ação dos poluentes e os resultados, segundo a organização, foram muito positivos. Prova de que sim, temos projetos bons e viáveis à disposição. O que falta é fazer.
Fonte: aguasclarasdoriopinheiros.org.br