Na época eu estava a cerca de 10 anos mergulhado de ponta cabeça na busca desesperada por conhecer tudo que havia. Estava preso há cerca de 13 anos, condenado a mais de uma centena de anos. Havia esperanças, tentara fugir algumas vezes e até conseguira dar passos fora da muralha certa vez. Mas eu já não queria mais a vida bandida; meus valores eram outros. Dinheiro e poder já não me fascinavam. Ansiava por me tornar um intelectual, uma pessoa reconhecida pelo seu vasto conhecimento. E isso me movia para os livros, cada vez mais apaixonadamente.
Estava encantado com a cultura européia. Amava a França, a Inglaterra e seus passados gloriosos. Precisava conhecer tudo aquilo de perto, parecia fantástico toda aquela cultura milenar. Aqueles lugares pareciam até saborosos de tão agradáveis que me sabiam. Morava em cela individual e a maior parte do tempo trancado; tempos duros na prisão. Maravilhosos para mim que adorava a companhia de meus livros, meus mapas e meus sonhos. E foi assim que nasceu a idéia.
Queria ir conhecer a Europa, então inventei um jeito todo meu de planejar e executar esse projeto. O plano seria conseguir sair da prisão, em primeiro lugar, depois correr atrás de capital para viabilizar a idéia. Viajaria para a Europa. Em Portugal compraria uma perua Kombi (era o carro das pequenas idéias que viravam grandes negócios) e faria adaptações para que a perua se tornasse minha casa e oficina de trabalho. Em cima colocaria placa em inglês e francês anunciando-me como pequeno prestador de serviços. Poderia até anunciar em auto-falante, caso fosse permitido. Faria consertos e ajustes em eletricidade, encanamentos, marcenaria e serviços de pedreiro.
Sempre levei tudo muito a sério. Para atingir tal desiderato, comecei por aprender francês com uma gramática e um dicionário. Corri atrás e consegui o cargo de escriturário no SENAI que havia na Penitenciária do Estado. Trabalhava à tarde e de manhã faria os treinamentos. Comecei com marcenaria, depois entrei no curso de Eletricista Instalador. Um ano e meio depois de me colocar no projeto, eu já era marceneiro, eletricista, lia livros em francês, já estava matriculado no curso de encanador e entrei de cabeça na gramática inglesa. De quebra, conheci um amigo argentino que me ensinava espanhol, enquanto eu lhe ensinava português.
De posse dos códigos de comunicação da Europa, entrei em contato com estrangeiros e brasileiros que estiveram por lá, para entender melhor o ambiente. Foi então que meu plano foi se esvaziando. Eles falavam de um preconceito enorme, algo absurdo; acachapante. Que a carteira verde do passaporte brasileiro era quase um documento que nos identificava como contraventores. Ladrões, traficantes, prostitutos, aproveitadores ou, no mínimo, oportunistas. Que já na chegada seríamos submetidos a severo interrogatório. Dependendo das respostas, já podiam nos colocar no avião de volta. Que os nativos nos tratariam qual fôssemos ninguém, inteiramente destituídos de importância. Seriam secos, duros e nada emocionais conosco. Que a autorização para que eu fizesse o que pretendia, sequer seria considerada. Enfim, fui colecionando uma série de notícias nada favoráveis aos meus planos. Cheguei ao fim do treinamento de encanador e ao fim da gramática inglesa já sem forças ou convicções para tocar o projeto em frente. Havia passado quase três anos de dedicação e estudo. A idéia de ser alvo de preconceito, aos poucos, foi corroendo as bases de minhas convicções.
Mas eu saíra no lucro e estava satisfeito: aprendera muito e quase de graça, valendo-me apenas de minha força de vontade. E, como não podia deixar de ser, criei um novo projeto a partir daquele. Agora seria com a mesma perua e o mesmo trabalho, mas nos litorais do Brasil. Do Sul ao Norte, de praia em praia e de comunidade em comunidade. Não deu certo também, pois só fui sair da prisão depois de mais de 30 anos cumpridos. Mas aprendi muito sobre meu país. E assim, de projeto em projeto (houveram os que deram certo; ser universitário, ser escritor, por exemplo), fui cumprindo minha pena, aprendendo e seguindo em frente até o fim.
Utilizamos cookies essenciais e tecnologias semelhantes de acordo com a nossa Política de Privacidade e, ao continuar navegando, você concorda com estas condições.