Son of a beach

O surfista mais desonesto ou exemplo de superação? Sunny Garcia dá sua versão da história

por André Caramuru Aubert em


Toda história pode ser contada de mais de uma maneira. Algumas histórias, porém, não apenas podem, elas precisam ser contadas assim. Uma delas é a de Sunny Garcia, o surfista mal-encarado, polêmico, às vezes violento (uma história); o garoto pobre que se superou e venceu na vida (outra história); o competitivo e excepcional surfista havaiano (mais uma); e por aí vai.

A poucos meses de completar 40 anos, Vincent Sennen Garcia, o Sunny, tenta reencontrar seu rumo. Depois de ter perdido um tempo precioso da carreira, com um processo fiscal que o mandou para a cadeia, ele voltou há dois anos decidido a retomar seu espaço no surf profissional. Então, logo no retorno, no fim de 2007, numa bateria da primeira fase no Pipe Masters, Neco Padaratz, liderando, marca Sunny e tenta barrá-lo numa onda. Sunny insiste e bota pra baixo. Afinal, ninguém costuma ter a coragem de usar regras de prioridade contra ele no Havaí. Mas Neco, imprudente, usa, e o resultado é que os dois se embolam e despencam com o lip da onda juntos, rolando. A bateria acabou para Sunny. Com a punição por interferência e a perda de pontos que fatalmente receberá dos juízes, ele não tem agora a menor chance. Mas o havaiano nem pensa nisso. Quando sua cabeça emerge da espuma, ele está raivosamente à procura de Neco. Sobe na prancha e rema, muito rápido, atrás do brasileiro. O qual, por sua vez, rema muito mais rápido para a areia. Na praia, Neco corre, assustado, e Sunny corre atrás. A turma do deixa-disso entra em cena, a pancadaria é evitada. Mais tarde Sunny pede desculpas e os dois acabam fazendo as pazes, mas a verdade é que Neco Padaratz, por conta dos "amigos" de Sunny, jamais voltaria a ter vida fácil no Havaí.

Sunny se defende. Em entrevista por e-mail, da Califórnia, onde hoje vive, ele reclama que a mídia adora colocá-lo no papel de violento, mas que mesmo ele se considera um cara relaxado, alegre, que tem bons amigos e é leal com todos. De origem muito pobre, pais separados, Sunny cresceu criado pela mãe, com mais um irmão, na costa oeste havaiana. Se não chegou a passar fome, viveu uma infância de refeições magras, de dias de luz e água cortadas por falta de pagamento, de convívio com drogas e criminalidade. Mas o garoto, desde cedo corpulento e com cara de mau, achou uma porta de saída no surf.

Localismo infame
Com talento muito acima da média, ele logo começou a ganhar campeonatos e em 1986, com apenas 16 anos, entrou para a primeira divisão do surf mundial, o WCT. Muita gente achou que ele, muito cedo, seria campeão do mundo. Para azar de Sunny, na mesma época surgia o fenômeno Kelly Slater. Então, ainda que, com seu estilo power surf, dominasse o Havaí (onde ganhou, ao longo da vida, nada menos do que seis tríplices coroas, um recorde longe de ser batido), derrapava nas ondas mais fracas e irregulares de outros picos. Ficava sempre entre os Top 10, terminou por quatro vezes em terceiro lugar, mas o título não vinha. Finalmente, quando todo mundo achava que seus dias estavam no fim, em 2000 ele foi irrepreensível: liderou o campeonato desde a primeira etapa, carimbando o título na penúltima, no Rio de Janeiro.

"Ele sempre intimidou os adversários nas baterias, às vezes fora delas também. No Havaí, com o apoio de amigos locais, as coisas eram piores"

Ninguém nega o excepcional talento de Sunny como surfista, especialmente em ondas pesadas. Mas o espírito competitivo dele é que às vezes, segundo pessoas que disputaram ondas com ele, como Renan Rocha, Teco Padaratz e Tadeu Pereira, extrapolava. Com aparência de lutador de jiu-jítsu, o que se fala é que ele sempre intimidou os adversários nas baterias, e às vezes fora delas também. No Havaí, com o apoio de seus amigos locais, as coisas ficavam ainda piores. O que nos leva à velha história do infame localismo havaiano, e eu pergunto a Sunny o que ele acha disso. Resposta: "É, viver no Havaí e se livrar do localismo não é mesmo fácil. Mas imagine que você está sossegado na sua casa e de repente chega um bando de Toms, Dicks e Harrys tentando fazer seus nomes ali, no seu quintal, aí você tem um crowd de egos, e a coisa fica difícil".

 


É, fica mesmo. Mas localismo, ainda mais baseado em intimidação física, não se justifica. Por outro lado, quando eu me lembro de como fica a praia que frequento quando chega o verão, com um monte de gente sujando e desrespeitando as regras básicas de educação, na água e fora dela, eu consigo entender o ponto de vista de Sunny e dos havaianos. As mesmas pessoas que criticam a excessiva agressividade de Sunny nas baterias reconhecem que ele foi um incansável batalhador pelos direitos dos surfistas em reuniões da ASP, a Fifa do surf. Para alguns, o maior problema do havaiano talvez seja o comportamento bipolar. É Renan Rocha quem fala: "Ele como pessoa é muito instável, o temperamento dele depende do momento, o cara pode perder a cabeça e sair para a briga e logo depois te dar um abraço como se nada tivesse acontecido. É difícil conviver com alguém assim". Renan, contudo, afirma que jamais teve problemas pessoais com Sunny.

Sol quadrado
Quando Sunny estava no que deveriam ser os anos finais da carreira, e num casamento em crise, a Receita Federal norte-americana bate à porta. A questão era sobre prêmios em eventos no exterior não declarados e com impostos por pagar. A coisa evoluiu e terminou na frente de um juiz, que o considerou culpado. No dia da condenação, ele falou: "Nunca surfei por causa da grana, mas, tendo crescido numa família pobre, você quer comprar tudo o que nunca teve, e eu acabei gastando meu dinheiro de maneira irresponsável". Mas a verdade é que a confusão parece ter se originado no contador, que, aparentemente por pura incompetência, deixou de declarar os prêmios. Descoberto o problema, Sunny demitiu o contador e contratou um segundo, o qual, na pressa de fazer um acordo com a Receita, "esqueceu" de listar cerca de US$ 400 mil. Aí os fiscais ficaram bravos de verdade e, por mais que Sunny argumentasse que a culpa tinha sido do contador, a chance de um novo acordo se evaporou. Segundo Sunny, eles falaram na cara dele: "Agora você vai é para a cadeia, você vai servir de exemplo para toda a comunidade do surf, para que eles vejam o que acontece com quem não paga os impostos".

 

Em 2010, Sunny terá 40 anos e competirá contra garotos de 20. Mas não dá para descartar quem contrariou todas as probabilidades

De acordo com o que costuma acontecer nos Estados Unidos nesses casos, a pena de três meses de cadeia, mais sete de prisão domiciliar, foi até leve, obra de um juiz compreensivo. Num caso semelhante, Richard Hatch, o vencedor do primeiro programa Survivor norte-americano, pegou quatro anos de prisão e mais três de condicional. O problema é que Sunny, que completou 37 anos de idade dentro da prisão federal de Lompoc, na Califórnia, era um atleta em seus últimos anos de alta performance, e o prejuízo para a carreira, entre audiências, prisão e prisão domiciliar, acabaria sendo de cerca de dois preciosos anos. Até porque, para piorar, a primeira oficial de condicional responsável por Sunny não o deixava surfar nem em competições, por mais que ele explicasse que aquilo era seu ganha-pão, e que precisava do dinheiro para, entre outras coisas, pagar as dívidas atrasadas à Receita.

A caminho de Ubatuba
Se vista sob essa perspectiva, a bateria em que se enroscou com Neco, em Pipeline, no primeiro evento em que competiu após a liberdade, ganha outra dimensão. Sem patrocinador, precisando do dinheiro das premiações, sentindo que o tempo estava se esgotando para ele, a pressão era enorme. E Neco (no seu papel) não estava facilitando. Não digo que Sunny não estivesse errado, tanto é que ele mesmo admitiu e se desculpou. Só digo que dá para entender. E o maior prejudicado foi ele mesmo. Cotado para receber um wildcard (convite especial) para voltar ao WCT em 2008, ficou de fora depois do incidente. Bem ao seu estilo, fez que não ligou, dizendo que voltaria pelo WQS, a divisão de acesso. Em 2008, não conseguiu por pouco. Acabou machucando o joelho e precisou operar. Em 2009 ele também não volta. Teve poucos resultados expressivos neste ano e, enquanto escrevo, ocupa a remota 103ª posição num ranking que classifica apenas os 15 melhores.

 


E em 2010, quando estará com 40 anos, competindo contra garotos com metade de sua idade, no circuito de acesso, que é repleto de etapas disputadas em merrecas? Será difícil, é verdade, mas não convém descartar ainda um cara que contrariou todas as probabilidades para chegar aonde está. De qualquer forma, pelo menos agora Sunny está novamente casado e feliz. De novo patrocinado, se não puder voltar ao WCT, poderá sobreviver como free surfer e competir nas categorias master e em eventos esporádicos. Sobre presente e futuro, o havaiano fala: "Você sabe, eu fiz um monte de besteiras na minha vida e tenho que viver com isso, mas agora estou mais maduro, aprendi a não confiar meu dinheiro a qualquer um e tento curtir as coisas da melhor forma". Será que agora, "mais maduro", Sunny vai ser um cara mais sossegado dentro da água? Não sei, mas pretendo descobrir em breve: no último e-mail da entrevista, convidei o bad boy havaiano para pegar umas ondas lá no quintal de casa, em Ubatuba. E ele falou que vem.

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