Sob ameaça

Como tudo que é bom dura pouco, as conquistas do Marco Civil já estão ameaçadas

por Ronaldo Lemos em

Como tudo que é bom dura pouco, as conquistas do Marco Civil já estão ameaçadas. A Câmara aprovou um projeto de lei para incluir o crime de “denunciação caluniosa com fins eleitorais”, que barra o debate político

Finda a mistura de êxtase e frustração gerada pela Copa, o país entrará direto no período eleitoral. Essa promete ser não apenas uma eleição disputadíssima, como também um momento em que o país terá de tomar decisões sobre o que fazer neste cenário de incertezas e desafios. Ao menos em uma área o Brasil deu passos na direção certa: a internet. A aprovação do Marco Civil deu um alívio ao menos temporário para uma questão central para o país, sobretudo para o período eleitoral: a liberdade de expressão (vale informar o leitor que estive envolvido com o projeto do Marco Civil desde a sua concepção).

O acerto do Marco Civil é visível especialmente quando comparado às leis que outros países estão adotando. A Rússia, por exemplo, adotou no mês passado a chamada Lei dos Blogueiros, que exige que qualquer dono de blog com mais de 3 mil visitas diárias cadastre-se no governo. De ativistas a sites de humor, passando por blogueiras de moda, todos precisam agora de registro para exercer suas atividades. O objetivo é equiparar as mídias sociais às mídias tradicionais. Todas as restrições impostas ao rádio e à TV passam a ser aplicadas também aos blogs. Por exemplo, fica proibido o uso de palavrões. E conteúdos considerados “ofensivos”, a critério do governo, podem ser removidos imediatamente. A consequência é que até o campeão de xadrez Garry Kasparov, hoje opositor do governo Putin, já foi censurado com base na nova lei.

Felizmente, no Brasil, o Marco Civil determina que cabe ao Judiciário – com sua estrutura de poder independente – decidir sobre a remoção de conteúdos, e não ao Executivo. Mas mesmo o Judiciário brasileiro vinha tomando decisões problemáticas, derivadas da total falta de regras para a internet antes do Marco Civil. A ministra Nancy Andrighi, pioneira e desbravadora da discussão sobre a internet nos nossos tribunais, clamava já em 2012 para que o Congresso adotasse regras para a rede que pudessem orientar os juízes em suas decisões.

O apelo faz sentido. Pouco tempo antes da adoção do Marco Civil, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tomou ao menos uma decisão fora da curva com relação à liberdade de expressão na internet. Em março deste ano, decidiu que as redes sociais tinham a obrigação de retirar do ar qualquer conteúdo “ofensivo” sem a necessidade de indicar sequer a página em que o conteúdo havia sido postado. Bastaria dizer que o conteúdo estava no ar e o próprio site teria de caçá-lo e removê-lo.

CALÚNIA ELEITORAL

Mas felizmente o Marco Civil trouxe regras diferentes para o caso, tornando esse tipo de decisão coisa do passado. A nova lei seguiu o padrão da maioria dos países democráticos (incluindo EUA e países da Europa) e, para a remoção de conteúdos “ofensivos”, passa a ser necessário no mínimo informar o endereço virtual onde se encontram, prevenindo assim a transformação dos provedores de serviço em “polícia” da rede.

Mas, como tudo que é bom dura pouco, as conquistas do Marco Civil já estão novamente sob ameaça. A Câmara aprovou em maio último um projeto de lei que modifica o Código Eleitoral para incluir o crime de denunciação caluniosa com fins eleitorais, com pena de oito anos de prisão. É claro que calúnia é crime e deve ser punida. Mas pena para a calúnia do tipo comum é limitada em dois anos de detenção. Estelionato gera pena de cinco anos. Já o novo crime, criado para proteger políticos, é punido com oito anos. Isso vai gerar um imenso desestímulo ao debate eleitoral nas redes sociais. E mostra que o sistema de valores e sobretudo o apreço pela liberdade de expressão andam desequilibrados em nosso país.

*Ronaldo Lemos, 37, é diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro e fundador do site www.overmundo.com.br. Seu Twitter é @lemos_ronaldo


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