Skinhead interior
André Caramuru Aubert: "O problema é o skinhead que vive dentro de cada um de nós"
O problema não são os skinheads que estão por aí, pois eles são perseguidos pela lei; o problema é aquele que vive dentro de cada um de nós, que não tolera o vizinho, o fumante, o diferente
“Então ambas tiveram ajuntamento carnal uma com a outra, por diante ajuntando seus vasos naturais um com o outro, tendo deleitação e consumando com efeito o comprimento natural de ambas as partes, como se propriamente foram homem com mulher, e isto pela manhã, e antes do jantar por duas ou três vezes pouco mais ou menos.” Esse é um trecho da confissão de Paula de Siqueira, tomada na Bahia, em 1591, por Heitor Furtado de Mendonça, enviado pelo Tribunal do Santo Ofício (a tal Inquisição) para averiguar as práticas “criminosas” de homossexualismo, judaísmo e bruxaria.
Ao longo de um ano, com base em denúncias (espontâneas ou não), os inquisidores arrancaram, apenas na Bahia, bem mais de cem confissões. A confissão de Paula de Siqueira comprometia seriamente sua ex-parceira, Felipa de Souza, acusada de tê-la seduzido, além de ter tido relações com outras cinco mulheres, que também confessaram. Como nenhuma das acusadas admitiu o uso de instrumentos fálicos nas relações, Felipa escapou da fogueira, sendo condenada “apenas” à execração em praça pública, sendo açoitada no pelourinho, em Salvador, e depois exilada.
A mesma sorte não teve Ana Roíz, acusada de criptojudaísmo, um “crime” obviamente muito mais grave. Quando foi interrogada, essa mulher, uma cristã-nova, era uma viúva de 80 anos. Entre as práticas de que foi acusada, e que explicitariam sua renitente fé judaica, estava a recusa em comer carne de cação (peixe sem escamas) e colocar a mão sobre a cabeça dos netos quando lhes dava a bênção. Ana Roíz foi condenada a morrer queimada.
NOVA INQUISIÇÃO
De lá para cá, melhoramos, ou assim parece. Afinal, se antes a lei institucionalizava e impunha a intolerância, agora proíbe e pune. Pelo menos no Ocidente já não se queima, apedreja ou degola por conta de opções sexuais, religiosas ou ideológicas. As pessoas têm o direito de exercer suas escolhas, desde que, naturalmente, respeitem as escolhas alheias. Quer dizer então que somos mais tolerantes que nossos antepassados? Sim, em parte. Como dizia um filósofo sobre a Constituição: se os direitos fossem mesmo iguais para todos, não seria preciso escrever isso na lei. A intolerância está bem viva, em todo canto, à espreita. E o problema não são os skinheads que estão por aí, doidos para bater em alguém, pois eles são previsíveis e perseguidos pela lei; o problema é o skinhead que vive preso dentro de cada um de nós, que não tolera o vizinho, o rival no trânsito, o fumante, o diferente.
Há pouco mais de 70 anos, quando as democracias ocidentais pareciam firmes e consolidadas, eis que algumas coisinhas aconteceram na Alemanha etc., que teriam enchido de inveja o mais cruel dos inquisidores do século 16. Quando a guerra acabou e parecia que esse tipo de coisa nunca mais aconteceria, houve (para ficar apenas com alguns exemplos recentes) os genocídios na ex-Iugoslávia e em Ruanda, ambos na década de 90. E gente aparentemente cordial e pacata, que cumprimentava os vizinhos na fila da padaria e fazia um cafuné na cabeça das criancinhas, logo estava denunciando aqueles mesmos vizinhos à polícia, ou à milícia, para serem presos, torturados e mortos. O grande e assustador mistério é o que faz com que, de repente, a porta se abra, deixando sair de dentro de nós o skinhead que vive ali escondido e dividindo o mundo, novamente, entre as Felipa de Souza e as Ana Roíz, de um lado, e seus inquisidores, de outro.
*André Caramuru Aubert, 48, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br