Amor, cartas e celular

Comprei de contrabando um aparelho dentro da prisão. Eu me escondia atrás das cortinas do banheiro pra falar com ela

por Luiz Alberto Mendes em

Comprei de contrabando um aparelho dentro da prisão. Eu me escondia atrás das cortinas do banheiro pra falar com ela, sussurrávamos a madrugada inteira. A paixão então explodiu em labaredas. 
Estava na Penitenciária do Estado quando recebi a carta. Ao ver a letra, algo dentro se comprimiu. Vinte e dois anos depois, e ela estava ali. A ansiedade tomou conta; era preciso responder imediatamente. Fiquei esperando a resposta na ponta dos pés, como eu havia amado aquela mulher!

Na época era casada e jamais permitiu qualquer avanço. Acho que a admiração por sua honestidade fazia parte daquele sentimento. Combati meus valores podres e quis ser correto. Digno. Quando ficou grávida do marido, foi cuidar da família. Eu estava apaixonado e dependente; sofri sua ausência, mas compreendi e respeitei. Não havia futuro para mim, minhas penas somavam mais de cem anos.

Ela não se fez por esperar: a carta trouxe sua trajetória naqueles 22 anos. Estava separada há tempos. Sua vida fora de realizações, havia se tornado uma mulher de enorme conceito na comunidade que habitava. Eu prosseguira na luta que ela me estimulara, já cumprira 29 anos de minhas penas e me tornara escritor.

Um ator da Globo vivera problemas com seu pai; sua tia lhe deu um livro em que o personagem tivera desastrosos desencontros com o pai. Ele leu, gostou e passou para a namorada. Esta, ao ler, lembrou que sua mãe lhe contara que, antes de ela nascer, havia conhecido um rapaz que estava preso em São Paulo. A história do livro contava algo parecido. Havia muita coincidência. Aquele era meu primeiro livro, Memórias de um sobrevivente. Ela, a mãe da namorada do ator da Globo, era um dos personagens principais do livro. Ela se identificou e me reencontrou pela editora.

Logo era como se aqueles 22 anos não houvessem existido. Tudo voltava com potência voraz. De repente nós queríamos, e agora ela podia. Comprei um celular de contrabando (os celulares eram novidade na prisão) e então a paixão explodiu em labaredas. À noite, atrás da cortina do banheiro, passava horas namorando. Ela contava seus sonhos eróticos e eu extravasava quase 30 anos de desespero sexual. Nós sussurrávamos (o guarda rondante não podia escutar) a madrugada inteira. Às vezes fechava os olhos e estava em sua cama possuindo-a carinhosamente. Jamais foi grosseiro, embora às vezes fosse selvagem. As palavras eram pura magia que nos transportavam para imagens frenéticas. Eu absorvia o que ela me dava, tremendo; ansioso por cada palavra, qual fossem os dedos de minha mão. Era intenso demais; meus olhos mantinham minha boca em seus ouvidos. De manhã, quando o sol se abria, eu desmaiava na cama, saciado.

RECOMEÇO

Momentos de imensa liberdade, embora estivesse ali, preso. Fui transferido para outra prisão onde não havia chances de ter um celular, essa tecnologia que tanto prazer nos possibilitou. Ela continuou fazendo por mim. Fiquei mais dois anos preso e jamais me faltou nada. Continuei escrevendo esta coluna, compondo livros, poesias e escrevendo cartas todos os dias para ela.

De repente, eu estava livre, depois de 31 anos e dez meses preso, e na rodoviária de São Paulo. O pessoal da Trip me levou à casa dela. Quando chegamos, ela nos aguardava na frente da casa. Fazia 25 anos que não nos víamos. Foi emocionante demais; eu estremecia a cada palavra dela. Seus olhos me focavam com carinho e certa compaixão. Eu absorvia tudo como uma esponja, meus olhos eram só para ela. Estava travado, não conseguia conversar. Não dava para acreditar: tudo parecia um sonho e eu temia acordar de repente.

Sete horas antes eu estava preso, ansioso por receber uma carta dela. Agora ela estava ali na minha frente, com as mãos nas minhas, os lábios nos meus e sua voz entrando pelos meus ouvidos. Só havia um modo de destravar. Pedi seu celular e liguei para o telefone dela. Ela me olhou, sentiu mais que entendeu e foi atender. E então consegui falar, pelo celular, de minha alegria, de meu prazer de estar em sua casa e de todo amor que eu lhe devotava. Desliguei o celular, bendizendo sua utilidade e fui abraçá-la.

Assim recomeçava minha vida.

*Luiz Alberto Mendes, 63, é autor de Memórias de um sobrevivente (Companhia das Letras). Seu e-mail é lmendesjunior@gmail.com 

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