Ser quem não sou
Ricardo Guimarães: "na natureza, anonimato é a camuflagem para se proteger do predador"
Falso e verdadeiro é coisa dos humanos. O que não quer dizer que o uso do anonimato na nossa sociedade não se justifique pelas mesmas razões do mundo natural: proteção e ataque
Caro Paulo,
“Não enche o saco, pai, isso não é coincidência, é convergência!”, reagiu o Tiago (que nunca fica no texto e vai atrás dos contextos) quando no almoço de domingo comentei a coincidência entre os temas da Trip e os meus interesses pessoais.
É verdade, afinal é por isso que estamos juntos há tanto tempo e é isso que faz de nós, leitores e profissionais do jornalismo, a comunidade Trip.
Mas dessa vez foi demais. Você sabe que tenho me dedicado a estudar a natureza, sua eficiência e beleza, para aplicar na gestão das empresas e suas relações, a tal da biomimética.
Pois é, nessa busca estou lendo o interessantíssimo Survival of the Beautiful – Art, science and evolution, de David Rothenberg, um professor de filosofia e música, no New Jersey Institute of Technology, que toca jazz. No meio dessa leitura recebo o tema desta edição da nossa Trip: Anonimato.
Na natureza, anonimato é a camuflagem que o ser vivo usa para se proteger do predador ou para atacar sua presa. Fingir que não é quem de fato é faz parte da sua identidade. É um legítimo expediente de sobrevivência, se é que posso usar o termo “legítimo” no mundo natural, uma vez que aí não existe o julgamento moral do falso.
Falso e verdadeiro é coisa dos humanos. O que não quer dizer que o uso do anonimato na nossa sociedade não se justifique pelas mesmas razões do mundo natural: proteção e ataque.
Trair relacionamentos
Quando quero garantir o sucesso de certas ações ou me proteger das suas consequências eu escondo minha identidade oficial. Exemplos dessas ações: fazer uma doação de dinheiro ou trair algum relacionamento.
Por que eu disse identidade oficial? Porque eu acredito que identidade é um permanente vir a ser de uma mistura riquíssima de ingredientes interagindo com circunstâncias com cujo resultado o próprio protagonista é o primeiro a se surpreender. Essa é uma das graças desta vida, que a gente deve proteger e ter coragem para se permitir usufruir. Só que nosso convívio social não permite tamanha liberdade de ser e nos aprisiona numa identidade oficial que são os contratos, os papéis que a gente desempenha para preencher as expectativas dos relacionamentos.
Esse é o jogo entre “tradição & traição” que o Nilton Bonder fala na Alma imoral e que a gente já comentou aqui na edição 195: a vida é feita do conflito de duas forças – uma de conservação e outra de experimentação. Uma quer manter do jeito que as coisas são, com os contratos vigentes, e a outra quer o novo que rompe os contratos. Desse embate nasce nossa individualidade e nossa realização com todos os riscos de ser amado ou rejeitado, de ser um original ou mais uma cópia, de ser feliz ou infeliz.
Confesso que não sei onde está o limite do saudável do ser-quem-não-sou. O que é experiência , o que é teatro e o que é sacanagem depende da intenção do protagonista e das consequências do ato. Pode deixar de ser apenas a vida como ela é, com ou sem arte, para ser caso de divã e psiquiatria até chegar às raias dos tribunais como caso de polícia.
É um risco que a gente tem que gerenciar. Mas, também, nunca ninguém nos disse que viver é seguro.
Abraço do amigo,
Ricardo
*Ricardo Guimarães, 62, é presidente da Thymus Branding. Seu e-mail é ricardoguimaraes@thymus.com.br e seu Twitter é twitter.com/ricardo_thymus