Sem medo de matar

Cenas recentes da atuação violenta da Polícia Militar não são casos isolados – e é preciso voltar à ditadura militar para entender a sensação de impunidade que domina a polícia brasileira

por João de Mari em

Um policial mata um motociclista para não pagar a viagem; um policial dá 11 tiros em um jovem que roubou sabão no mercado; um policial atira um homem de uma ponte. Cenas da atuação violenta da Polícia Militar que tomaram o noticiário na última semana não são casos isolados – e é preciso voltar à ditadura militar para entender a sensação de impunidade que domina a polícia brasileira. A Trip ouviu especialistas para entender a origem dessa violência.

No Brasil, a ideia de polícia surgiu séculos atrás, mas foi um longo caminho até que ela fosse organizada como hoje: além das polícias federal, rodoviária e ferroviária, submetidas ao governo federal, cada estado tem uma Polícia Civil, que cuida da inteligência e investigação de crimes, e a Polícia Militar, responsável por atender ocorrências e garantir a segurança pública.

Para Camilo Vannuchi, jornalista e autor do livro e podcast “Eu só disse meu nome”, biografia de Alexandre Vannucchi Leme, estudante torturado e morto na ditadura militar, episódios como os que assistimos recentemente mostram a “certeza da impunidade histórica com raiz na ditadura militar”. Segundo ele, a proteção do Estado a qualquer crime cometido por seus agentes é um ingrediente fundamental para violência policial em 2024.

“O Brasil é um país que não tem pena de morte, mas há um salvo-conduto para matar, torturar, desaparecer com suspeitos e fazer esse tipo de coisa que a gente tem visto. A certeza da impunidade dos agentes de segurança pública tem origem na ausência de punição para qualquer pessoa que tenha torturado e matado durante a ditadura no Brasil”, explica Vannucchi.

“O golpe militar foi dado em 1964 e os primeiros movimentos de resistência armada começaram a surgir em 1969. Como as Forças Armadas (Exército, Aeronáutica e Marinha) não tinham atividades de policiamento, a ditadura achou necessário criar uma força para atuar internamente, seguindo a ética e modus operandi do Exército."

Reorganização das polícias

Em 1969, um decreto do então presidente militar Costa e Silva orientou a reorganização das polícias no Brasil. A Guarda Civil e Força Pública, que realizavam o patrulhamento das ruas e cumpriam um papel secundário de policiamento, viraram a Polícia Militar. A ditadura precisava de uma força ostensiva para cercar ruas, verificar documentos e porta-malas de carros para encontrar “materiais subversivos”.

Para o advogado Ariel de Castro Alves, presidente de honra do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo, o erro está na Constituição Federal, que oficializou a PM. Ele cita o artigo 144, que prevê que as polícias militares funcionem como uma reserva do exército. Segundo ele, isso mantém “os mesmos princípios, treinamentos e atuações da época do regime militar”.

“Os policiais se preparam e vão para as ruas como se estivessem numa guerra onde os ‘inimigos’ são jovens pobres, negros e moradores das periferias. Diante desse legado ditatorial, temos os altos índices de abusos e mortes praticadas por policiais", diz Alves.

Discurso violento

O advogado ainda chama atenção para uma postura do Estado que encoraja a atuação violenta que, somados ao legado da ditadura, resultam numa escalada da violência policial não vista desde a década de 1990. "Em São Paulo, por exemplo, o secretário de segurança Guilherme Derrite, ex-oficial da Rota, e o governador Tarcísio de Freitas deram licenças para os abusos da polícia militar com as declarações que fizeram desde a campanha eleitoral."

Sob comando de Derrite, que em 2021 declarou a um canal no YouTube que foi afastado da Rota [a tropa de elite da PM] por excesso de mortes, a letalidade policial no estado dobrou. De janeiro a outubro deste ano, a PM paulista matou 676 pessoas, segundos dados da Secretária de Segurança Pública — o número é mais que o dobro dos 331 casos registrados em 2022. Só nos últimos 30 dias em São Paulo, 45 PMs foram afastados e dois foram presos por envolvimento em ações violentas.

Quem concorda é Vannuchi. Ele acredita que, além do discurso que endossa atitudes violentas, a sensação de impunidade tem a ver com a anistia. Promulgada durante a ditadura, a Lei da Anistia concedeu perdão a crimes políticos praticado por militares, bem como a quem lutou contra o regime, entre 1961 e 1979.

Nenhum agente condenado 

Ainda que órgãos internacionais tenham determinado que a lei não poderia proteger torturadores de responsabilização, o Supremo Tribunal Federal reafirmou, em 2010, a validade da anistia no Brasil. Até hoje, nenhum agente foi punido por crimes cometidos durante a ditadura. 

“Quando um comandante da polícia diz que jogar um homem de uma ponte foi um ‘erro emocional’, ele está diminuindo a gravidade da situação. Salvo raras exceções, o resultado mais comum é a polícia afastar esse agente da rua como forma de punição mais rigorosa. Essa impunidade tem a ver com a anistia, que permitiu que nenhum torturador sofresse punição até hoje”, afirma Vannuchi.

“Essa violência também tem a ver com os autos de resistência, registros policiais utilizados para justificar mortes ou lesões causadas por agentes de segurança pública em situações alegando confrontos, como em resistências armadas durante operações ou prisões. Autos de resistência dificultam as investigações. É como culpar a vítima do abuso pelo abuso. É um salvo-conduto."

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