Sem culpa

Consciências tranqüilas demais. Quando a cabeça pesar, quem sabe a gente vai pra frente

por Ricardo Guimarães em

Caro Paulo,

Conheça o sono dos injustos.

Algumas semanas atrás a revista Época (nº 418) deu uma nota sobre a “Mente Bandida”, onde aprendi que existem pessoas que “podem matar e dormir em paz”, segundo Jorge Moll, Ph.D em Neurological Disorders and Stroke, de Maryland, EUA.

De certa forma eu sempre soube disso, mas nunca tinha visto um estudo científico sobre o fenômeno, como o de Howard Abadinsky, professor da Divisão de Justiça Criminal e Estudos Legais da St. John’s University, NY, que descreve a mente de “pessoas com comportamento anti-social”: ausência de sentimentos, de culpa, pena ou remorso; pouca aversão ao risco; e baixa visibilidade do futuro.

A nota não pára aí e ainda cita o ex-agente do FBI John Douglas, estudioso da anatomia dos crimes: “Eles não são movidos por ideologias (emoção), mas pelo poder”.

Embora a revelação não acrescente muita coisa ao mundo de quem vive atrás das grades; que, aliás, é por isso que está lá; a descrição da “mente bandida” me impactou muito.

Explico por quê: essa é também a descrição do comportamento de nossa sociedade como um todo. Somos uma sociedade curto prazista, sem ideologia e sem culpa ou remorso do que fazemos de errado. Plebe ou elite, somos tolerantes demais conosco mesmos como um bando de pequenas mentes bandidas.

Corrupção diária 

Quando uma dona de casa não pede nota fiscal, quando o médico dá consulta sem recibo, quando compramos DVD pirata, quando furamos fila, quando “vendemos” nosso voto, estamos convivendo com um percentual de bandidagem em nossa mente dita honesta e íntegra.

E, pior, sempre com um consistente álibi que justifica e perdoa esses pequenos delitos e que nos dá o direito ao sono dos justos: o governo é corrupto! se eu não cuidar de mim quem cuida? sou, mas quem não é? Sem falar nos boêmios apocalípticos que acreditam ignorantemente que “é hoje só, amanhã não tem mais”.

Se existem as grandes mentes bandidas é porque ainda temos muito que aprender para que a sociedade não seja solo fértil para sementes que se desenvolvem sem a luz necessária para ver com clareza as escolhas que a vida oferece.

E não adianta reclamar por um salvador da pátria ou por instituições confiáveis porque somos nós mesmos com nossos valores frouxos os responsáveis por essas instituições frouxas, a começar pela presidência da República ocupada por um símbolo nacional de nossa frouxidão de valores.

É aí que reside nossa impotência para desarmar as artimanhas da grandes mentes bandidas que povoam o governo, os tribunais, o Congresso, as empresas e os presídios. No fundo, acreditamos que ninguém é diferente da gente, então, deixamos o barco correr até que nosso salvador tenha misericórdia de nós e nos livre desse impasse.

Meu amigo Fábio Barbosa costuma dizer que precisamos cobrar do Congresso reformas Tributária, Fiscal etc., mas a grande reforma de que precisamos é de valores pessoais. Não tenho dúvida: esse é o único caminho. E está nas mãos de cada um de nós, o único salvador ao nosso alcance, segundo as mais sagradas regras da salvação.

Boa ou má notícia, esse é o fato.

Para dormir bem com essa responsabilidade devíamos todos nos reconhecer com o mesmo desafio e nos ajudar mutuamente a eliminar essa herança de incivilização que nos ameaça tanto. Ninguém é melhor que ninguém. Somos apenas mais ou menos bandidos. Não é mais confortável assim?

Abraço saudoso do amigo, mais uma pequena mente bandida que acredita que a desgraça coletiva é mais suportável. E mais fácil de resolver.

Ricardo.

Créditos

Imagem principal: Vitché

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