Se joga, Gui
Embarcamos com Gui Pádua em sua trip pra se tornar o homem que mais tempo voou na história
Fato: o corpo, o instinto entendem a queda livre como morte certa. É a consciência, apoiada na técnica, que acha muito divertido pular de um avião, de um prédio, uma antena. O resultado é o que ele também define, muito bem, como um “esguicho de razão”, nos instantes que antecedem um salto.
Sua exposição televisiva nos últimos dez anos fez dele o mais famoso pára-quedista do Brasil. A cabeleira verde, as celebridades que fizeram saltos com ele, seus vôos partindo de prédios famosos, seu pouso no Rock in Rio III. O que pouca gente sabe é que, por trás da fama, está um dos melhores esportistas da queda livre mundial, campeão mundial em 98 fazendo dupla com o francês Patrick de Gayardon.
Patrick foi uma espécie de Pelé do ar. Arquiteto do free fly,estilo de vôo mais técnico, improvisado e cheio de recursos, já realizou façanhas tidas como impossíveis nos céus. E inventou um dos protagonistas desta reportagem: o wing suit.
É o traje de gala que Gui Pádua vai vestir em um de seus maiores “esguichos de razão”. Não, Gui Pádua não se acha um super-homem. Mas vai tentar se tornar a pessoa que mais voou na história. Em termos mais claros: vai tentar bater o recorde mundial de tempo em queda livre. Gui está atrás de quebrar a marca de Joseph Kittinger, um capitão americano que saltou em 1960, com roupa de astronauta, de 102 mil pés, vácuo,
voou por 4 minutos e 36 segundos antes de abrir seu pára-quedas.
Apesar de três espanhóis terem divulgado uma queda livre de 6 minutos quando cruzaram voando o estreito de Gibraltar, em 2005, a falta de provas e a própria hesitação da equipe em submeter a marca à FAI (Federação Internacional de Esportes Aéreos), mantêm Kittinger no topo – onde Gui quer estar.
Gui, que só vai contar com cilindros de oxigênio e agasalhos, quer saltar de apertados 30 mil pés. Para cair por tanto tempo, vai depender do wing suit, que, graças à maior resistência no ar, permite uma queda mais lenta do que a convencional. Nascido em Patápolis (MG), criado em São Paulo, contaminado pelo Rio, Gui Pádua é, antes de tudo, um ressentido. Fez de tudo para realizar o vôo no Brasil. Ele prossegue com sínteses, “a condição tupiniquim” danou seus planos. A Aeronáutica havia prometido emprestar um avião Tucano para levá-lo a 30 mil pés, altitude extrema para aviões de pára-quedismo.
Mas o “caos aéreo” colocou oficiais sob investigação. Em 12de abril deste ano, um dia antes do salto, os milicos cancelaram tudo. Foi o segundo 13 de abril mais triste da vida de Gui. O primeiro foi o de 99, quando Patrick morreu despencando no Havaí. A data do salto era uma homenagem a Patrick.
Agora, Gui está nos EUA, nove meses depois da data marcada. Para quebrar o recorde, precisa superar um frio de -45ºC, o ar rarefeito do quase vácuo, controlar sua queda, segurar a velocidade no braço sem desmaiar e abrir o pára-quedas o mais baixo que puder. Mas, antes, Gui precisa dirigir 18 horas, da Flórida ao Tennessee. E dar uma carona para a Trip.
Play, recorde
São cinco horas da manhã do dia 8 de novembro. Estamos no estacionamento do DeLand Sky Diving, na Flórida. Gui Pádua é o vulto iluminado pelo farol, anunciando a sua handcam o início da viagem de 18 horas rumo ao extremo oeste do Tennessee. Levou em suas malas três câmeras de vídeo e registrou 20 horas nas fitas. Tudo para um documentário sobre sua vida e seus feitos. Quebrar o recorde que planejou por nove anos é um capítulo deveras importante. Assim como para o livro autobiográfico que está quase pronto. Ele quer bancar uma alcunha autoproclamada, ainda assim verdadeira, de “o homem que passou mais tempo voando na história”. No banco de trás do Toyota alugado, Joe Semler descobre a almofada onde vai passar 40 horas nos próximos dias – sempre na janela direita. Foi contratado por US$ 500 para ser o cameraman. Só que Joe mal sabia pressionar o rec. Gui teve que fazer tudo funcionar.
Bonde do rolê
De longe não é a viagem mais longa da minha vida, mas, certamente, a mais corrida. Depois de nove anos ruminando o salto que vai fazer no Tennessee, Gui Pádua tem muita pressa. Não me dá cinco minutos de acostamento para um retrato no capricho, uma anotação mais longa ou um almoço decente. Só há tempo para uma refeição ao dia, junk food, necessariamente. De resto, apenas snacks, muffins e copos X-Large de café fraco. Até o rádio não pára quieto nos dedos de Gui Pádua, que muda de estação sempre em busca de hip hop. Segura vez ou outra uma câmera de vídeo para depoimentos e imagens de estrada. Nem assim o Toyota pára – ele guia com os joelhos. E sempre ele. Durante toda a semana que passamos rodando, foi o único ao volante.
Let it beescha
Joe é um americano de West Virginia que, aos 26 anos, passa a vida dobrando páraquedas alheios e saltando sobre DeLand. Tem 500 vôos, pouco para um profissional. Exhumorista de stand-up comedy, oscila entre o silêncio e um explosivo entusiasmo quando vê na estrada uma antena boa para base jump. Arregala os olhos: “Wow, awsome, duude! Supercool!”. Joe é sinceramente caricato como um americano genuíno. Antes de entrar no carro, sabia só uma palavra em português: “baseadáo”. Quando se despediu, havia decorado algumas frases para exibir-se aos turistas brasileiros: “Io amo paraquedisma” e “Io soy beescha” (expressão para galantear moças, segundo o informamos).
Gui é nosso guia
Falante e extremamente autocentrado, Gui Pádua parece saber muitas coisas boas a seu respeito. Não se acanha em ostentar a seriedade e a meticulosidade de seu ofício, sua regularidade e clareza, seja para pular de antenas ou lidar com mulheres. Para ele, “é tudo preto no branco! Nego vê minha cabeça verde, eu pulando do prédio com a língua pra fora e acha que sou doido. Brother, vai tomar no cu. Seu eu fosse louco não tava vivo, tá ligado? Sou sério pra caralho”. Toda frase de Gui Pádua é salpicada de gírias e palavrões. Algo que, combinado com o cabelo tingido, as tatuagens cobrindo tronco e membros, os óculos extravagantes e o estilo mezzo gangsta que desfila, poderia vestir de hipocrisia seu discurso de profissional exemplar. Poderia, mas não é o caso. No métier de Gui, quem não é exemplar se estabaca no chão a 200 km/h. Vai ver que é por isso que quer chegar tão logo na área de salto de West Tennessee. Vai ver que é por isso que, com pinta de garoto-problema, jamais exceda as 75 milhas/h, o limite de velocidade nas estradas amplas e retas que cortam o sul dos EUA.
Homem na pista
Depois de uma noite maldormida na diminuta cidade de Only, reduto de caçadores e caminhoneiros, corremos mais três horas de estrada até chegar no West Tennesse Sky Dive. Toda a pressa compensou. Chegamos antes de o lugar abrir, ganhamos duas horas livres. Joe tentava ler uma Trip no banco de trás, Gui se filmava tocando violão e eu pude escrever em uma superfície parada depois de dois dias. No rádio, só eu dei risada, tocou “We are the champions”.
Tudo pelo H.A.L.O.
Este é Kevin Holbrook, capitão reformado da força aérea americana. Ex-combatente contra os Sandinistas em El Salvador, dedicou os últimos 30 anos da vida ensinando gente a saltar de onde não há mais oxigênio. Foi Mike Mullins quem aconselhou Gui a contratá-lo. Veio rápido de New Orleans com o melhor equipamento para saltos de H.A.L.O. (High Altitude Low Opening, ou alta altitude, baixa abertura). Tem mais de 3 mil saltos superiores a 30 mil pés. Ele forneceu cilindros, mangueiras, válvulas, uma aula dos riscos no ar rarefeito e serviu de apoio durante o vôo. E descolou um puxadinho de O2 para que eu pudesse voar no ar rarefeito.
Pádua, we have a problem
Se os militares brasileiros deram o perdido em Gui Pádua, os ex-milicos americanos não hesitaram em cuidar de nosso homem-pássaro. E, não à toa, Gui escolheu Mike Mullins como seu piloto. Ele comanda o West Tennessee Sky Dive, é presidente da associação americana de pára-quedismo, dono e piloto do King Air, considerado o mais rápido e eficaz avião para saltos dos EUA. Capitain Mullins, assim que olhou o equipamento que Gui trouxe do Brasil, despejou notícias como bombas:
• O caro sistema de oxigênio que Gui bancou e ajudou a projetar não era adequado aos encaixes dos cilindros e do avião. Além disso, detalhes no material poderiam se tornar fatais nos 30 mil pés de altitude – baixíssima pressão e temperaturas menores do que -40oC.
• Eu disse 30 mil pés? Nada disso. Mullins informa que não vai subir a mais de 28 mil. Desde o 11 de Setembro, aeronaves particulares não podem ir além desse limite nos EUA, apenas com autorizações especiais. Gui sugere que Mike desligue o transponder e dê os 2 mil pés de lambuja. Parece que nosso patrício esqueceu que não está no Brasil. Mike nem cogita. Com 2 mil pés a menos, Gui Pádua pode perder até 20 segundos de queda. Justamente a margem que lhe daria praticamente a certeza do recorde. Finalmente, diante de todo aquele equipamento que, subitamente, pareceu uma gambiarra, Mike Mullins pede seu pagamento adiantado. “Caso você morra amanhã”, explica sem um sorriso.
Haja estômago
O clima pesou. Seguimos para um hotel fuleiro na cidade de Sommerville com Gui enfurecido. Bradava: “O Brasil é uma piada”. Quando descarrega as malas, vê que esqueceu o carregador de baterias de sua câmera principal. Chuta forte o pára-lamas. O carro amassa. Gui pede pra ficar sozinho.Quase meia-noite, bato na porta. Ele organizava o equipamento depois de jantar um bate-entope de feijão mexicano, carne com chilli e chips com pimenta. Para um homem prestes a tentar uma façanha, a cena era bizarra. Nada mais banal, ou menos atlético, digamos. Desejei boa sorte e deixei Gui ainda de pé, com os olhos presos no Pimp my ride na MTV. Volto ao quarto e Joe grita: “Baseadááo!”. Quatro horas depois, estaríamos de pé.
Acorda pra subir
Gui acordou mais tranqüilo do que foi dormir. Ainda assim, ficou calado no caminho para a área de salto. Comprou meio litro de café, que tomou junto com duas latas de Flash Power. Antes das seis da manhã estacionamos e, mau sinal, era o dia mais frio até então. Coisa de 3oC, o que, a quase 30.000 pés, significa -45oC. Mike Mullins tinha muita pressa. Às 7h15 sentou-se apertado no cockpit, deu a ignição nas hélices e ameaçava suspender o vôo se não entrássemos imediatamente no King Air. Gui não estava propriamente vestido. Kevin ainda fixava com velcro e tiras de plástico o suprimento de oxigênio no fundo da mochila do pára-quedas. Gui faz cara feia, coloca o capacete e liga as duas filmadoras acopladas. São elas que vão registrar o tempo de queda livre. Apesar do frio, Gui suava. Dentro de sua roupa estavam algumas bolsas quentes. Pálido, nariz escorrendo, garganta doída, ele guardava um segredo: há minutos, já de wing suit, vomitou o que restava da comida mexicana. Embarcamos.
No ar rarefeito
O King Air é o que dizem, sobe rápido demais. Em sete minutos já passamos dos 15 mil pés e colocamos as máscaras. A partir daí tudo muda, e sente-se na pele que estamos em um sutil, porém real, dégradé rumo ao vácuo. O corpo ganha uma bizarra leveza interior e o ar fica ralo. Os olhos mudam de cor, esbugalham-se, o sangue começa a expandir no corpo. A pele fica rosa como um porco. O O2 bastante concentrado na máscara é que nos mantém em pleno funcionamento. Em proporção errada o balanço químico do sangue mudaria com uma só respiração. Em 30 segundos eu estaria desmaiado.
Não há tempo para pensar. Catorze minutos de vôo e batemos os 28 mil pés, um lugar em que o ser humano simplesmente não deveria estar. O frio endurece meus dedos, mas não posso usar luvas. Preciso fazer o foco da foto. E torcer para que a lente não rache com o frio radical que vai tomar a cabine quando a porta abrir. agora.
Gui está ajoelhado olhando para fora. Nada de seu corpo está descoberto para não virar gelo. Enrosco um cinto de segurança na perna, ilusão de apoio, e chego ao lado da porta. É o inverso de uma fornalha aberta. Um frio sólido nos encharca. E acontece algo que Gui havia prevenido. quando alguém salta de um avião, parece que você vai pular junto. Assim que ele se jogou naquele imenso nada, o maior frio foi na minha barriga. Clic!
A dobra ou nada
Quando Gui sumiu pela porta, Kevin checou o altímetro. 28.600 pés. Capitain Mike deu um chorinho enfim, o que, na queda livre, pode significar mais 5 ou 6 segundos. O King Air mergulha para pousar em 8 minutos. Joe resume: “Fucking crazy, duuude”.
De volta ao galpão, enquanto esperamos Gui dar as caras, é hora de encher o King Air com a primeira carga de pára-quedistas. O amplo salão está cheio de gente vestindo macacões e dobrando pára-quedas. Estranho, mas é nessa hora, com os pés no chão, que esse povo que adora se atirar de aviões salva a própria vida. Me sobe um arrepio. Um daqueles montes de nylon precisa impedir que eu me arrebente. Logo vou saltar pela primeira vez na vida. Não senti medo, exatamente, mas só pensei que não seria nada bom morrer no redneck chão do Tennessee.
O telefone de Kevin toca. Gui Pádua está vivo. A 15 milhas dali. O corpo que cai Enquanto caía, Gui precisava fazer força, segurar no braço toda a resistência do ar que dava nas “asas” de seu wing suit. Justamente a força que o fazia voar na horizontal e cair mais devagar, o segredo para superar o astronauta Kittinger. Olhou cinco vezes para seu altímetro no pulso. Aos 2 mil pés, puxou a cordinha. Flanou com o pára-quedas e pousou em um rancho deserto, entre pés de algodão. Deitou-se no chão e deu um berro. “Ahhhhh.” Suas primeiras palavras depois do mais longo de seus 10.500 saltos: “Ah, muleeeeque!”. Em seguida, caiu no choro, já de frente para a lente, e dedicou seu salto a Patrick de Gayardon.
Andou 4 milhas até cruzar um carro de uma senhora corpulenta, Cristina Lumpkins, que o informou que estava em Hickory Valley e deu uma carona ao supermercado. Em troca, pediu uma Trip com esta matéria. De lá, Gui nos telefonou. Enquanto nos dirigimos para lá, ele pôde tirar a câmera do capacete e contar o tempo da queda. Encostado na calçada do deprimente Wal Mart da cidade de Bolivar, Gui Pádua foi o homem mais feliz do mundo. Ninguém voou por tanto tempo na história: 4 minutos e 40 segundos.
Caí, e daí?
“Melhor do mundo, brother!”, Gui desabafa. Exaurido de esforço e glória, avisa que não vai saltar comigo, no prometido salto duplo. Enfiado entre skydivers há cinco dias, senti uma estranha necessidade. Eu precisava saltar. Precisava de uma amostra grátis do sentimento que faz gente como Gui, como Joe e como todos aqueles americanos ali largar o chão, uma profissão e, às vezes, a própria vida. Mike Mullins prometeu me jogar do próximo avião.
Subimos rápido, e a cada minuto a cabine fica mais séria. Em 13 mil pés, os sete presentes começam a bater nas mãos uns dos outros. Bud, um pára-quedista de 55 anos, será meu guia no salto duplo. Clic, clac nas cintas e mosquetões. 15 mil pés. Mike reduz e velocidade e a fila tem que andar. A primeira coisa que fica no ar é a ponta do pé. 1, 2, 3. O instinto apavora com a iminência da morte. A razão diz que tudo vai ficar bem. A liberdade hipercondicionada, a velocidade abstrata como o chão visto de cima. Sentir-se poderoso e vulnerável em um habitat transitório e invisível. Um minuto e dez até abrir o pára-quedas. Um dos três êxtases que conheci: orgasmo, DMT e queda livre.
Look this, Joe!
Esse é o buraco. Viu? Eis a paranóia da viagem toda. Um jogo besta de tudo, que Gui ensinou. A primeira, e mais importante, regra do jogo do buraco é que, uma vez que você aprendeu, nunca mais pode parar de jogar. A segunda: não olhe para o buraco. Se olhar, apanha. Joe caiu na pegadinha, em queda livre, quando estendi a mão no ar. No placar final, quando o deixamos em DeLand, ele perdeu feio. Tocamos o bonde para Miami, pit stop rápido para o vôo de volta ao Brasil.
Parada volátil
Gui tinha seu notável recorde, eu a minha pauta. Aliviados, batemos no hotel à beira-mar e comemos doces para celebrar. Na praia, caminhando na cafona orla, Gui conta que, chegando em casa, vai raspar a famosa cabeleira. Promessa para São Judas Tadeu, homenagem a seu falecido pai, que se chamava Tadeu por conta do santo. Pergunto sobre ego, algo que, por toda a viagem, supus ser inflado em Gui. Ele nega, diz ser uma pessoa praticamente desprovida disso, que, se achando o máximo, morreria cedo. E, enquanto a primeira chuva da semana despenca do céu, explica por que sua marca heróica não lhe faz arrogante: “Sabe uma parada, brother? Uma parada real?”. Dá uma pausa. “Somos muito voláteis.”