Saudades do passado
Convém não confundir nostalgia com vintage. Nostalgia é outra coisa
Convém não confundir nostalgia com aquilo que foi descoberto pelos profissionais de marketing como tendo elevado potencial de vendas e acabou batizado de vintage. Nostalgia é outra coisa
Se nós, os falantes da língua portuguesa, podemos nos gabar de ter a palavra “saudade” só para nós, não dispomos do mesmo privilégio com relação a sua universal prima, a nostalgia, que costuma ser definida como um certo estado de melancolia por coisas que passaram. Assim, antes de mais nada, convém não confundir nostalgia com aquilo que, descoberto pelos profissionais de marketing como contendo um elevado potencial de vendas, acabou batizado como vintage e passou a representar qualquer produto que, de alguma maneira, remete ao passado. Principalmente, o que é ainda mais curioso, quando se trata de um passado que não se viveu: como acontece com jovens estudantes universitários, nascidos em plena democracia, e que saem de casa vestidos como se estivessem indo enfrentar as forças da repressão de 1968. Ou com aqueles simpáticos cinquentões, barbados, com jaquetas de couro e tentando fazer cara de mau, em cima de Harley-Davidsons, como se fizessem parte de gangues motorizadas da Califórnia na década de 1950. Não. Decididamente, nada disso é nostalgia.
Marketing e modas à parte, a nostalgia faz parte da vida de todos nós. Cada pessoa a alimenta num grau e esta oscila, claro, conforme o estado de espírito. É provável que, conforme envelheçamos, fiquemos mais nostálgicos. Chegamos a nos lembrar, com saudade, de situações complicadas e épocas em que passamos os maiores perrengues. A querida Bernardete (Bê), que cuidava de mim quando pequeno e já não vive mais, relembrava emocionada seus tempos de criança, quando, após a morte prematura do pai, ferroviário em Casa Branca, na Mogiana, ela, a mãe e os irmãos passaram por enormes dificuldades. Chegaram a passar fome, mas eram unidos e não perdiam a esperança de que as coisas melhorariam... e ela era feliz, ou pelo menos assim se via, ao se lembrar daquele período muitos anos depois. Eu, que não sou uma pessoa especialmente nostálgica, me lembro com saudade da Bê e dos causos que ela me contava, histórias “verdadeiras” da infância dela e que incluíam lobisomens e assombrações, sendo tudo aquilo, para mim, tão real quanto mágico.
A nostalgia é também um dos mais preciosos materiais de que dispõem o cinema e a literatura. Para esta, entre inúmeras possibilidades, invoco o escritor russo Vladimir Nabokov. Tendo que deixar a Rússia com a revolução de 1917, quando ainda era adolescente, sem nunca mais poder voltar, Nabokov, como qualquer um que tenha passado longos anos no exílio, tinha todos os motivos para ser nostálgico (até o fim conservou a esperança de que o regime comunista terminaria a tempo de ele poder regressar. Falecido em 1977, ele perdeu a aposta por 14 anos). Curiosamente, a nostalgia não é assim tão presente na obra do autor de Lolita. Mas, quando aparece, ela é inesquecível, como no trecho que transcrevo agora, que está em seu livro de memórias (Speak, Memory, fora de catálogo no Brasil). Cultivando reminiscências a respeito de uma longínqua tarde de verão, Nabokov escreveu: “Uma sensação de segurança, de bem-estar e de calor de verão invade minha memória. Aquela realidade robusta faz do presente um fantasma. O espelho transborda de brilho; um marimbondo entrou voando na sala e bateu no teto. Tudo está como devia estar, nada jamais mudará, e ninguém estará morto, jamais”.
MELANCOLIA
Um marimbondo batendo no teto, um espelho, tudo estando como devia estar, sem nenhuma mudança, sem que ninguém tenha morrido. Quando releio esse texto de Nabokov eu me lembro, sem querer, de cenas da década de 60 em Ubatuba, de manhãs na casa de minha avó em Guararema, de ir aos jogos do São Paulo com meu avô, da Bê, de trocar as fraldas de meus filhos bebês. Não me lembro disso tudo, porém, de uma maneira amarga, ou desejando voltar ao passado; mas como alguém que guarda dentro de si pedaços do que há muito tempo se passou, e que, de vez em quando, com uma sensação mista de felicidade e melancolia, os vê emergir, nítidos, como se tivessem ocorrido ontem. Sim, acho que nostalgia é isso.
*André Caramuru Aubert, 50, é historiador, editor e autor do romance A vida nas montanhas. Seu e-mail é andre.aubert@hotmail.com