Sarney, Renan e a história que se repete
Não podemos dissociar as ações de políticos dos acordos que os mantêm vivíssimos
Quando assistimos a vergonhosa crise penitenciária no Maranhão, não podemos dissociar as ações de políticos que se perpetuaram no poder local dos acordos que os mantêm vivíssimos em âmbito nacional
O IDH, Índice de Desenvolvimento Humano, é um dado utilizado pela Organização das Nações Unidas para analisar a qualidade de vida de uma determinada população. Desde que o índice é medido no Brasil, os estados do Maranhão e de Alagoas disputam o posto de pior desenvolvimento humano do país. Além do abandono das suas respectivas populações às condições mais precárias do território nacional, ambos os estados têm outra coisa em comum: seus maiores expoentes políticos comandaram o Congresso Nacional nos últimos anos.
Claro que estou falando de José Sarney e de Renan Calheiros. O primeiro, ex-presidente da República e do Senado Federal, apesar de senador pelo Amapá, manda no belo Maranhão há mais de 40 anos. Sua filha é a atual governadora do estado. O segundo, senador de Alagoas e atual presidente do Senado, é remanescente do projeto político de seu conterrâneo Fernando Collor, foi ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso e dita as regras do lindo estado alagoano. Os dois são do PMDB, principal aliado do PT no governo e na base de sustentação do Congresso.
A política brasileira é tão complexa e confusa que, em toda a sua história, os grupos que se apropriaram do poder constituído, para não largar o osso, criaram a ideia da composição pela governabilidade. Qualquer tipo de pecado ideológico é justificado por ela. No processo de redemocratização do país, por exemplo, essa prática se aprimorou. A Frente Ampla, que foi montada para tentar viabilizar as eleições diretas e depois, com o fracasso da tentativa, lutou para eleger no colégio eleitoral o primeiro civil após o longo e terrível regime militar, foi articulada por Tancredo Neves, do PMDB, que acabou eleito presidente da República, e pelo maior expoente da política da Bahia, Antonio Carlos Magalhães, do PDS, partido que foi fiel escudeiro dos militares nos anos de chumbo. O vice-presidente da chapa, olha ele aí de novo, era Sarney, que, com a morte de Tancredo Neves, assumiu a presidência.
LEGIÃO DE CÉTICOS
E a história foi se repetindo. Grandes figuras se juntando a outras não tão nobres em busca de poder. ACM manteve-se na crista da onda até o fim do governo FHC, período em que comandou o Congresso na presidência do Senado. Era a dobradinha PSDB/PFL. Sobre o PT, a pureza durou até o processo de eleição de Lula, quando começou a se articular a base de sustentação com o PMDB e tantos outros partidos ideologicamente nada alinhados, mas fisiologicamente irmãos.
Voltando aos dias de hoje e ao IDH de Maranhão e Alagoas, podemos constatar que não há bem maior que justifique esses acordos de governabilidade. Os chefes dos estados estão há anos no poder estadual e federal e muito pouco aconteceu para melhorar a vida das pessoas dessas regiões. Não é difícil concluir que o fato de estarem no poder se explica, em parte, pelos próprios índices terríveis de desenvolvimento, que tornam a população mais vulnerável às práticas dos famosos currais eleitorais. E o governo federal tem, sim, responsabilidade nisso tudo. Quando assistimos a casos como a vergonhosa crise penitenciária no Maranhão, ou os constantes desvios éticos do atual presidente do Senado, não podemos dissociar as ações locais lideradas por famílias que se perpetuaram no poder nos estados dos acordos nacionais que os mantêm vivíssimos na política e intactos dentro de suas casas. Ninguém os ameaça.
Tenho certeza de que a legião de céticos que misteriosamente se formou no Brasil vai me perturbar evocando as frases realistas de sempre, dizendo que política é assim mesmo e que não há espaço para sonhadores ingênuos. O que sei, e aí me perdoem os especialistas, é que o primeiro passo para o fim do coronelismo arcaico e bandido é o fim das coligações e dos acordos pragmáticos com coronéis arcaicos e bandidos. Ou isso, ou nada feito. Tenho nostalgia e fome de pureza.
*Alê Youssef, 38, é apresentador do programa Navegador, da Globonews, comentarista do programa Esquenta!, da TV Globo, advogado e produtor. Seu e-mail é alexandreyoussef@gmail.com