São Paulo, Brasil

Quando Clemente gritou “Pânico em SP”, naquela noite fria de 1986...

por Paulo Lima em

A festa de lançamento do projeto Trip aconteceu numa noite gelada no alto do edifício Itália, de cara para o Copan. No pequeno palco, entre as bandas convidadas, Os Inocentes gritavam pela garganta do baixista Clemente a letra inclemente de “Pânico em SP”, talvez o mais memorável sucesso do grupo protopunk forjado nas bordas da cidade. Corte para uma sala de reuniões mais de 27 anos depois. Várias semanas antes do início das manifestações classificadas como o maior levante popular dos últimos 20 anos no Brasil, um sentimento de indignação forte, apesar de não unânime, consegue convencer o grupo que pilota a revista a assumir um tema para a edição seguinte: o absoluto mal-estar que tomava conta, ainda que até então de forma mais silenciosa, da maior cidade da América Latina. Por que raios a metrópole que responde por 33% do PIB do país e que representa sozinha a terceira maior economia da mesma América Latina é incapaz de oferecer mais que uma vida tão dolorida, desgastante, insalubre, competitiva, cara e violenta aos seus pouco mais de 11 milhões de habitantes? Aqui vale mencionar que o número não é exato já que, só por causas derivadas diretamente da poluição, morrem 4 mil por ano, como se verá na matéria da página 52.

O argumento daqueles que punham a ideia em xeque na reunião eram defensáveis. Nada disso era exatamente uma novidade. São Paulo e caos são praticamente sinônimos há décadas, como aliás cantava já dizia a música quase 30 anos atrás.

Mas, mesmo assim, e com o perdão pelo uso da surrada imagem da taça à espera da última gota, teimava em permanecer no ar uma percepção forte de que aquele copo que de fato já vivia lotado havia tanto tempo, poderia estar muito perto de entornar o caldo sobre suas bordas. Foi esse sentimento da iminência de um ponto sem volta que nos levou a mergulhar no assunto que surpreendeu a nós e a todos alguns dias depois. Ruas completamente tomadas por gente vazando por todos os poros, como se fosse o líquido que, de uma hora para outra, sem que tivesse havido um fato específico detonador, transbordava mais e mais, como uma enchente que explode abrindo com força os caminhos a percorrer, capaz de desviar de qualquer obstáculo ou força que possa tentar se interpor.

O limite do suportável em São Paulo funcionou como um gatilho para fazer entornar todos os outros copos já igualmente cheios que vinham se segurando e que, numa espécie de reação em cadeia, passaram a jorrar por todo o território. Os observadores mais atentos do que fazemos por aqui notaram que há apenas três meses, em abril, dedicamos a edição 220 da Trip a observar o que chamamos de “novo ativismo”, o mesmo que o soció­logo espanhol Manuel Castells em seu novo e interessante livro preferiu batizar de “redes de indignação e esperança”. Os ainda mais ligados no nosso trabalho sabem que desde o início de 2005 vimos tratando, em cada edição da revista (e dos veículos digitais e eletrônicos que produzimos com a mesma bandeira), das causas e consequências do que classificamos como o derretimento progressivo e inexorável do modelo de organização e de vida ainda vigente, apesar de moribundo. Castells diz que o próprio conceito daquilo que entendemos por democracia não atende mais aos verdadeiros anseios do povo, ocupado que está em fortalecer os já poderosos e garantir a perpetuação de seus poderes. Ele classifica o estado das coisas prestes a transbordar como um momento de “aflição econômica, cinismo político, vazio cultural e desesperança pessoal”.

É exatamente nisso que temos procurado investir nossos recursos desde o início. Na proposição de reflexão que permita que a água, em vez de perigosamente represada, flua na melhor direção. Quando abordamos de dinheiro a alimentação, do novo ativismo às formas modernas de entendimento do cérebro, do sexo ou da educação, estamos tentando cumprir uma função que parece afinada com um dos maiores benefícios gerados por este conjunto de manifestações que rasgaram o país na segunda quinzena de junho de 2013: acordar da letargia, da acomodação, da aceitação passiva do que é dado, da injustiça, da ignorância, da gestão vagabunda que perpetua a desigualdade, da cafajestice institucionalizada, da violência banalizada (que é parte da vida diária de quem mora nas periferias paulistas desde muito antes de qualquer passeata) e da estúpida mentalidade insensível ao sofrimento e até mesmo à existência do outro que grassa em São Paulo de forma especial.

Sociólogos, avós, presidente da república, policiais, dentistas, jornalistas, antropólogos, juristas, jogadores de futebol, desempregados, manobristas e até mesmo, acredite, Fausto Silva... em poucos dias, é como se o software de todas as pessoas estivesse sendo trocado e o hardware sofrendo uma espécie de reboot, uma religada para passar a funcionar sob outra lógica, em outro ritmo, numa outra frequên­cia. Em última análise, tentando entender que diabos afinal queremos para nós e para o mundo. Que vida merecemos viver. Como queremos que sejam os próximos anos e os que virão depois...

Aqui na Trip estamos felizes porque também estamos fazendo essas perguntas. Desde quando Clemente gritou “Pânico em SP”, naquela noite fria de 1986.

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