Sangue frio
Eric Bergeri quase morreu soterrado por uma avalanche, perdeu o irmão e amigos para a neve
Depois de 5 min sufocantes, minha mente ia se apagando aos poucos. Eu lutava para me manter consciente, soterrado debaixo de 1,5 m de neve, em uma montanha na Rússia, a quilômetros da estação de esqui de Krasnaya Polyana. Estava asfixiado. O CO2 intoxicava meu corpo, a respiração se tornava rápida e difícil, a boca se enchia de neve gelada. Assim que a avalanche parou, os flocos se solidificaram instantaneamente. Paralisado, estava como em um escuro e silencioso caixão. A última visão que tive foi a da neve se partindo e deslizando em grandes pedaços, em volta de todo o grupo de sete snowboarders que me acompanhavam. Foi um barulho terrível, e todos foram levados pelo brutal deslizamento.
Eu sabia as estatísticas de sobrevivência a uma avalanche. Se a pessoa não morrer com o impacto, as chances de sobrevivência após 15 min caem para meros 15%. Tinha consciência do que iria acontecer nos próximos minutos. Estava quase desmaiando e não podia mais sentir minha respiração, cada vez mais lenta. Aos poucos ela cessaria e meu coração seguiria pelo mesmo caminho. Toda minha motivação para lutar contra o inevitável ia deixando meu corpo, à medida que minha mente se esvanecia a cada segundo. Eu não tinha sequer a capacidade de me desesperar. Pensei na minha filha. Como e por que teria que acabar morrendo nesse lugar? Não estava pronto para a morte.
Tendências suicidas? Nada disso
Cresci em uma estação de esqui nos Alpes franceses. Meu irmão e eu brincávamos com tudo o que podia deslizar, praticávamos snowboard fora das pistas. Na adolescência, me interessei pela fotografia e logo juntei os dois hobbies. Em janeiro de 1993, meu irmão morreu em um acidente quando fazia snow. Sua morte foi o começo de uma nova etapa pra mim, percebi que a vida é curta e que precisava aproveitar cada minuto, fazendo as coisas de que gostava, sem seguir regras e padrões. Até 1995 nunca tinha viajado de avião. Durante a década seguinte, contudo, pulava de um avião para outro, mais de cem vezes nos anos mais agitados, para chegar aos melhores destinos possíveis para fotografar na neve. Do Alasca à Rússia, passando por Canadá, Estados Unidos, Japão, toda a Europa e Nova Zelândia. Trabalhei com os melhores snowboarders do mundo, em lugares que jamais tinha tido a expectativa de conhecer na vida. A morte do meu irmão foi indescritivelmente dolorosa, mas, se não tivesse acontecido, eu nunca teria alcançado tudo isso, passei a ter mais consciência de minha própria vida.
Snowboarders profissionais amam a vida tão intensamente que, ao colocá-la em risco, se sentem ainda mais vivos
A vontade de se sentir vivo é a motivação de todos os snowboarders profissionais que conheci. Alguém poderia pensar, olhando as fotos ou assistindo a filmes de snowboard, que essas pessoas têm tendências suicidas, mas não é nada disso. Muitos são responsáveis pais de família, como os dois melhores freeriders do mundo, o francês Xavier Delerue e o americano Jeremy Jones. Eles amam a vida tão intensamente que, ao colocá-la em risco, se sentem ainda mais vivos. Estar em uma situação em que se pode morrer a qualquer segundo é a melhor maneira de dar valor à vida. Isso é algo que as pessoas “comuns”, aquelas que seguem um mesmo padrão do berço ao cemitério, jamais entenderão.
Há diferentes tipos de snowboarding. Um deles é o freeriding, no qual o snowboarder usa obstáculos naturais das encostas das montanhas. Trata-se do último degrau do esporte, e a maioria dos praticantes usa helicópteros e snowmobiles – motos de neve – para alcançar os picos, quase sempre de difícil acesso. Alasca e Canadá guardam os melhores refúgios e oferecem risco altíssimo. Em uma estação de esqui, o snowboarder só precisa se preocupar em saltar e aterrissar. Nas grandes montanhas, por sua vez, você lida com variações climáticas, avalanches, pedras escondidas sob a neve e outras armadilhas de um terreno natural. E ainda tem que conseguir meios de chegar até lá.
Em um snowpark, por sua vez, é muito baixo o risco de se ferir gravemente. Os obstáculos são bem calculados, e os ferimentos maiores são evitados com as roupas e equipamentos de proteção obrigatórios. Fora das estações, o maior medo é o de quebrar a coluna vertebral e acabar numa cadeira de rodas, o que só aconteceu com um profissional que conheci. O ferimento mais comum é mesmo o rompimento de ligamentos do joelho, que costuma deixar o atleta de molho por um ano. Mas a triste verdade é que todo ano um profissional de snowboard morre no freeriding. Perdi bons amigos na última década e outros tantos ficaram seriamente feridos. A montanha e a natureza nos oferecem muito, mas também nos tiram muito.
Num país fora do mapa
Depois de passar vários anos trabalhando nos melhores e também mais óbvios lugares para tirar fotos de snowboard, senti que era hora de aumentar o desafio e ir além, buscar lugares jamais explorados. Outros snowboarders concordaram em me acompanhar e, então, nesses últimos três anos, nosso pequeno grupo passou a correr não só o risco do esporte, mas também o de viajar com pouca infraestrutura para países como Nepal, Caxemira (região indiana no Himalaia reivindicada pelo Paquistão), Abecásia (Estado separatista da Geórgia) e Irã. Uma coisa é viajar em um helicóptero de uma reconhecida empresa no Alasca. Outra, bem diferente, é embarcar em um helicóptero militar do Nepal. Em viagens assim, o perigo não estava só nas encostas, mas também nas ruas.
No Nepal, a ideia era bater recordes de altitude. Usamos um helicóptero militar para alcançar 6.000 m em Annapurna, no Himalaia. Levamos uma semana para encontrar o melhor lugar para o snowboard, mas a ventania e as condições da neve fizeram com que abortássemos a missão.
Uma coisa é viajar em um helicóptero de uma reconhecida empresa no Alasca. outra é embarcar em um helicóptero militar no Nepal
Ano passado fomos para a Abecásia, um “país que não existe”. A Abecásia tem presidente, hino nacional e exige visto para visitantes. No entanto, apesar de ter declarado independência em 2008, essa porção da Geórgia não aparece em nenhum mapa e não é reconhecida por nenhum país do mundo, exceto a Rússia. Fica entre o litoral leste do mar Negro e as montanhas do Cáucaso, ensanduichada entre a amiga Rússia, ao norte, e a inimiga Geórgia, ao sul. Ao chegar, deparamos com um país devastado pela guerra civil. Vimos casas e prédios destruídos, um cemitério devastado, comboios russos e das Nações Unidas indo e vindo pelas estradas. Voamos em um helicóptero MI-8 do exército local, e as ameças estavam em todos os lugares: no ar, porque os pilotos eram inacreditavelmente inexperientes; na neve, particularmente instável; e nas ruas, pelo clima constante de guerra.
Logo depois dessa viagem, fomos à Caxemira fazer uma reportagem para a revista americana Transworld Snowboarding. Assim que nosso grupo chegou ao aeroporto de Srinagar, capital da região, acabara de acontecer um bombardeio no centro da cidade, matando algumas pessoas em um mercado.
Por conta disso, os militares indianos estavam ainda mais desconfiados do que o usual, e fomos parados várias vezes até chegarmos a Gulmarg. Para o nosso grupo, o maior perigo era a possibilidade de sermos sequestrados e executados pelos separatistas. A estação de esqui de Gulmarg fica entre o Paquistão e a Índia, exatamente onde alguns ocidentais já perderam suas vidas nas mãos de rebeldes. Os dois países, ambos potências nucleares, estão em estado de guerra iminente há pelo menos 50 anos e mantêm tropas, armamentos, tanques e aviões nas fronteiras da Caxemira.
Um mês antes de nossa chegada, a líder oposicionista Benazir Butho havia sido assassinada em um atentado a bomba que deixou dezenas de mortos. Acompanhávamos esses acontecimentos, a 4.200 m de altitude, nas montanhas do Himalaia, a 10 km da fronteira com o Paquistão. Encontramos em Gulmarg o mais alto teleférico do mundo, que nos levou à melhor neve de nossas vidas. Era simplesmente o paraíso. Depois de uma semana no céu, voltamos para Srinagar e voamos de volta a Delhi. O maior susto dessa viagem veio no último dia, uma impressionante avalanche em uma das encostas do pico de Afarwat. Bom registrar que não tivemos nenhum problema com a população local.
Último flash de consciência
Se na tensa fronteira entre Índia e Paquistão deu tudo certo, alguns amigos americanos não tiveram a mesma sorte ao praticar snowboard no Líbano, no mesmo ano. No caminho para curtir a neve na estação de esqui de Faraya, a 50 km de Beirute, foram detidos por militantes do Hezbollah armados e mascarados. Não podiam estar mais perto do noticiário da CNN do que aquilo. Foram liberados, depois de explicarem várias vezes que só queriam praticar snowboard e tirar fotos. Morrer nas mãos de extremistas definitivamente não teria o mesmo gosto para um profissional de snowboard do que morrer na neve.
Enquanto isso, eu estava fotografando no Irã. O país tem montanhas incríveis e as pessoas são extraordinariamente hospitaleiras. Fomos à estação de esqui de Dizin, Shemshak e Tochal, onde iranianos endinheirados aproveitam a neve longe da polícia e da guarda revolucionária. O clima que viria três meses depois, com a polêmica reeleição de Ahmadinejad, já estava no ar. A maioria das pessoas com quem tivemos contato estava ansiosa para falar sobre política conosco, estrangeiros. Poucos tinham esperanças de ver melhorias e estavam cansados das regras e regulamentações dos aiatolás e da falta de liberdade.
Um grupo de americanos foi detido por militantes do Hezbollah perto de Beirute. não poderiam estar mais perto do noticiário da CNN
Não nos vimos em situações perigosas no Irã, mesmo sendo este um país em que é perigosamente fácil se encrencar com a polícia, ainda mais se você for mulher. Pessoas do sexo oposto não podem ficar juntas na rua ou nos carros, a menos que sejam marido e mulher ou parentes próximos. Uma garota que conhecemos levou cem chibatadas por quebrar essa regra. Também é proibido ouvir música estrangeira, ou simplesmente ouvir música em alto volume. A lista de proibições é longa, e os policiais sempre podem interpretar tudo de maneira subjetiva.
Nos últimos meses, alguns iranianos morreram lutando pela liberdade. Há um melhor jeito de morrer? Não sei. Quando minha vida estava escapando de minhas mãos sob a avalanche na Rússia e eu achei que não seria resgatado, só pensei que não estava pronto. Eu estava exatamente entre um derradeiro flash de consciência e a escuridão eterna quando senti um toque no meu ombro. Parecia uma sonda, uma longa vara flexível e dobrável que carregamos em nossas mochilas de snowboard. Alguém tinha me encontrado, graças a um aparelho que usamos embaixo de nossas roupas, justamente para situações assim. Todos de nosso grupo se salvaram. Desmaiei e voltei lentamente à vida. Ao abrir os olhos, pude ver a imagem borrada e brilhante de meus amigos Rémi e Per puxando meus braços e minha cabeça para fora do buraco escuro. Mal recuperei minha consciência quando pude sentir o ar novamente, e deixei escapar um grito primitivo. Não podia estar mais perto de um renascimento.
* Eric Bergeri nasceu em 1973, em Grenoble, nos Alpes franceses. Fotógrafo profissional, foi editor das revistas Wind Surf Neige, Freestyler e Snowboard Unit. Nos últimos três anos, Eric vive entre a França e o Brasil, com sua filha e a namorada.