Salve, galera

Como um grupo de amigos transformou a Prainha no maior santuário para o surf no RJ

por Ricardo Schott em

Como um grupo de amigos unidos pelo surf conseguiu preservar e transformar a Prainha no maior santuário para o esporte encravado no perímetro urbano do Rio de Janeiro

O Dia do Amigo, 20 de julho, não vingou como esperavam as associações de comerciantes brasileiras, mas, em certa faixa de areia longe poucos minutos do miolo da Barra da Tijuca, entre o Portal de Sernambetiba e a praia de Grumari, foi definitivamente festejado pelos que se acostumaram a pegar as ondas do local. Depois de duas semanas de tempo cinza, finalmente o sol refletia animado sobre as águas na mitológica e afastada Prainha. “Deixei uma gravação que estava fazendo aqui perto e que acabou cedo só para vir encontrar meus amigos”, diz o surfista pernambucano Carlos Burle. “Isto aqui é um paraíso dentro da cidade grande.” Burle, acostumado a “ondas pequenas, médias e grandes”, como costuma dizer, é um dos vários nomes conhecidos, de surfistas profissionais ou não, que frequentam o recanto, praia mínima (sacou o nome?), de apenas 700 metros, tornada especial por causa “das ondas que batem na direita, na esquerda, no centro e não param de rolar”, como explica o campeão. E cuja história de preservação ambiental tem raízes justamente na amizade de um grupo de surfistas que se entregou às ondas numa época em que o esporte ainda remava rumo à profissionalização.

Reunidos para a foto da Trip poucos dias antes, em meio a telefonemas, e-mails e torpedos (disparados pelo elétrico José Alla, atual presidente e sócio-fundador da Associação de Surfistas e Amigos da Prainha – Asap), os veteranos não deixam de ir ao local. Todos brincam uns com os outros e chamam-se por apelidos. O respeitável engenheiro Guilherme Jaques, dono de uma belíssima cabeleira branca, é mais popularmente conhecido como Gralha. Antonio Abrantes, surfista conhecido na área e um dos ex-presidentes da Asap (e um dos mais exaltados quando o assunto é a associação), é popular há décadas como Neném. Nem todos podem ir lá todos os dias – o campeão Rickson Gracie, aguardado, apareceu de fininho quando a reportagem já se preparava para ir embora. Antes de cair na água, deixou como lembrança uma homenagem ao pessoal que ajudou a preservar a praia e que se aventura por aquelas ondas desde a época em que ele começou a ir para lá, nos anos 70.

“Aqui, a união faz a força mesmo”, diz o lutador. “Mesmo com o crescimento do Rio, a Prainha se preservou graças ao movimento feito pela galera da Asap, que lutou pela manutenção do Parque Ecológico e para que nossos filhos pudessem conviver com um lugar desses.” De surfistas conhecidos a anônimos apaixonados pelas ondas e gente famosa como Rickson, os atores Cauã Reymond e Rocco Pitanga, o músico Lazão (Cidade Negra) e Ricardo Arona, outro astro do MMA, quem já foi quer logo voltar, atraído pelas ondas e pelo clima de amizade e família que rola no lugar.

Condomínio, jamais!
Na história da Prainha, teve uma pedra. Um punhado delas, milhares – juntas, poderiam ter iniciado a construção de um condomínio de prédios residenciais ou de uma série de bangalôs, como chegou a ser especulado. Tudo começou em 1989, quando o primeiro presidente da Asap, Carlos Eduardo Cardoso, o Grande, foi negociar a venda de uma moto no escritório da construtora Santa Isabel. “Ele se deparou com a maquete de um condomínio de prédios que estava para ser construído no lugar onde hoje há o Parque Municipal da Prainha”, recorda José Alla. “Eram uns oito prédios, de uns 20 andares cada um, mais um shopping center. O projeto já tramitava.” Da mata nativa – 1 milhão de metros quadrados repletos de flora e fauna ameaçadíssimas de extinção – não restaria nada.

Os dois convocaram vários amigos e resolveram protestar em uma bela passeata em frente à sede da construtora no Leblon, documentada à época pelos jornais, com destaque pelo Globo ecologia, da TV Globo. E, diferentemente dos protestos antiviolência do Rio, a grita dos surfistas não morreu no meio das ondas. Pelo contrário, foi desse grupo que surgiu, em agosto de 1992, a Asap, que, com ajuda política, transformou a Prainha em Área de Proteção Ambiental.

A transformação da mata no organizadíssimo Parque Municipal da Prainha viria depois, em 2001, e a mata local se transformaria no Parque Municipal da Prainha. A fauna e a flora local estavam num terreno particular de propriedade da família Drault Ernany, que concordou em trocar a área por terrenos em outros bairros da cidade para que o parque fosse estabelecido.

Amor à natureza
Parafraseando aquele bizarro meme das redes sociais, daria para dizer que na Prainha o homem ama/é a mata, as ondas e cada grão de areia da praia. A amizade, antes de existir entre os frequentadores, acontece entre eles e o local. Quem frequenta cuida a ponto de orientar gente que nunca foi vista por lá antes. Quem trabalha por lá, por sua vez, cumpre seu dever muito além da obrigação. “O carioca não conhece a Prainha”, diz o guarda municipal Edson Leandro do Carmo, responsável pela segurança do parque. “Ele passa por aqui e vai até Grumari. Então, quem vem mais aqui é turista. Outro dia mesmo vieram umas senhoras de Minas. Fui levá-las lá em cima, nas trilhas”, diz, apontando para a montanha.

Quem não liga para ondas e prefere o contato com a mata encontra “lá em cima” uma trilha circular e outra que segue para o mirante do Caeté. E ainda tem a administração do parque, com um belo deck no qual ocorrem aulas de ioga e confraternizações da Asap, cujo QG fica ali, onde a vista do mar e da mata convida até quem nunca se aventuraria nas ondas. Ou na mata virgem.

“O que a gente faz é por amor”, garante o corretor de imóveis Luiz Antonio Mattos, vice-presidente da Asap. “Lutamos muito para colocar lixeiras aqui, fizemos parcerias. Você não imagina as loucuras que já fizemos para manter isso assim.” Bem, para um homem que cobriu os braços com tatuagens feitas por ele mesmo (“com agulha comprada na papelaria e tinta nanquim”, explica, candidamente), a noção de loucura interessa bastante à reportagem. Na década de 1970, época em que Luiz se autotatuou, a estrada da Guanabara, que leva à Prainha, mal era asfaltada. Ele e Abrantes, o Neném, puderam ver o local por perspectivas um pouco diferentes da galera que morava por perto – o primeiro veio da Ilha do Governador, o último, do Méier.

Aquela turma conseguiu interromper a construção de um condomínio e de um shopping center. Fundou uma associação e transformou a Prainha em área de proteção ambiental

Outros nomes que ajudaram a sedimentar o histórico da área chegavam de lugares como Jacarepaguá, mais perto, mas ainda precisavam vir de carro. “Nos anos 70 e 80, as histórias de amizade já começavam no fato de a gente ter que rachar gasolina, de o combustível acabar no meio do caminho e a gente ter que se virar”, lembra Luiz. Para quem morava por perto, no Recreio, por exemplo, a lida era mais leve: bastava andar um pouco com a prancha debaixo do braço. Ainda assim, uma história nova para todos. No fim dos anos 1970, o asfalto veio. A passos mais largos que a popularização do local.

Pranchas monoquilhas, artefatos da K&K e do pioneiro Rico de Souza, vela no lugar de parafina e rock nos ouvidos (“Curtíamos Led Zeppelin, Nazareth, Black Sabbath, mas tinha muita gente que ouvia mesmo era MPB”, entrega Alla, que naquele tempo morava igualmente longe, em Laranjeiras). Quem queria pegar onda improvisava, pegava dicas com os amigos. “Fazíamos as cordinhas para prender as pranchas com garrotes comprados na farmácia”, lembra o presidente da Asap, que cai na água da Prainha desde 1975. “Fui levado lá pelo meu pai, que pegava onda na época em que estava no quartel.” Bem mais vazia nos anos 1970, a praia não tinha sequer um estacionamento, numa época em que os picos de surf eram as praias da zona sul, com suas gatas internacionalmente conhecidas e seus primeiros campeonatos. “Vimos que a qualidade das ondas do Recreio era bem melhor. Era uma aventura vir para cá. Começamos a passar o dia aqui, juntos, a fazer viagens de surf. Nessa época, antes da Asap, já usávamos a casa do parque para nossas reuniões. Tínhamos a chave do portão do terreno e nos tornamos guardiões.” O dono do único trailer da área, seu Osmar, chegava a guardar as chaves dos poucos carros que se aventuravam por aquelas bandas.

Nem sempre estar à frente da Asap foi fácil. O beneficiário final é o ecossistema. Mas a galera briga e discute. “Não dá para fazer da maneira que todo mundo quer. Mas nossa amizade só se fortaleceu com os problemas”, garante Neném. “A gente passava o dia juntos, mas tinha gente aqui que eu só conhecia de apelido. Não sabia nem o nome, nunca tinha ido na casa dele [Luiz] nem ele na minha. Hoje sou muito mais amigo dele do que antes. Viajo para surfar e encontro amigos meus dos anos 70 na água, fora do Brasil.”

Um clima de irmandade que passa de geração para geração, como lembra o surfista e publicitário Marco Alho, prestes a se desvencilhar de sua camisa social e sua calça jeans para encarar as ondas. “Criei meus filhos aqui e sei que eles têm vários ‘pais’. Todos os meus amigos olham por eles como se fossem deles também. Isso aqui é uma segunda família”, afirma, cumprindo o ritual de passar parafina na prancha, ajustar as quilhas e contemplar o mar. É na casa de Marco que ocorrem as festas de fim de ano da Asap.

Como nas velhas histórias sobre personagens que, soltos na mata, aprendem com o local e entram em interação com ele, a Prainha ensinou tudo para os jovens senhores que aparecem nestas fotos e nestas linhas. “O principal é que a gente está olhando para isto aqui hoje”, diz Neném, apontando a mata. “E vai ver novamente daqui a alguns anos.”

Linha do tempo:

1982: A inauguração da Barraca do Pepê divide os territórios: voo livre é na praia do Pepino, em São Conrado; os surfistas, por sua vez, espalham-se pela Macumba e pela Prainha

1989: Uma construtora lança o projeto de um condomínio residencial e comercial na Prainha. Os surfistas fazem passeata de protesto

1990: Promulgação do projeto do então vereador Alfredo Sirkis, que virou a Lei nº 1.534/90, transformando a Prainha em Área de Proteção Ambiental

1992: Unidos, os surfistas da área criam a Associação dos Surfistas e Amigos da Prainha

2001: Criação do Parque Natural Municipal da Prainha 

2012: A Prainha é candidata à bandeira internacional Blue Flag, que atesta a qualidade das águas de praias no mundo todo. O resultado do monitoramento sai até 2014

Crédito: Lorraine Evernham
Crédito: Daniel Smorigo
Crédito: Arquivo Pessoal/Pedro Skooby
Crédito: Daniel Smorigo
Crédito: Robert Schwenk
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Crédito: Robert Schwenk
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Crédito: Arquivo pessoal/Pedro Skooby
Crédito: Tito Rosemberg
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