Salam Aleikum

Carta aberta ao fundamentalista Osama bin Laden

por Carlos Nader em

Caro bin Laden,

Confesso que estou meio constrangido. Posso te chamar de Osama? Como se começa uma conversa com alguém como você? "Osama, como vão as coisas"? É ruim.

Fundamentalista entende as palavras ao pé da letra. "Osama, por onde você anda"? Você não responderia. Então vou mandar mesmo um "Salam Aleikum", que a paz esteja contigo. Com a gente ela não está, você sabe muito bem. E tem culpa nisso.

Você até pode argumentar que paz total é uma atração exclusiva do cemitério. Tudo bem. Eu sei que a vida não é um show do Andreas Vollenweider. Mas resolvi te escrever porque outro dia li um jornalista dizendo que você era a pessoa mais inteligente da nossa época, já que mudou o mundo em um dia.

Vem cá, quem disse que os idiotas não podem mudar o mundo? Podem. A história está lotada de exemplos. Sobretudo quando os idiotas têm parceiros tácitos nos postos- chaves do poder mundial. Desculpe, Osama, sou obrigado a discordar do jornalista e a abandonar os salamaleikuns: a julgar pelos teus atos, ou você é uma das pessoas mais burras do mundo, ou a parceria que você tem com poderosos no Ocidente é menos tácita do que parece.

Não me entenda mal. Eu não tenho a menor queda pelas teorias de conspiração. Nem por aquela já ridicularizada, que atribuía teus crimes a uma sociedade com a CIA e o Mossad, nem muito menos por aquela que via no teu inimigo Saddam um perigo imediato para o Ocidente. E que resultou na morte de milhares de pessoas no Oriente.

Acho que tanto a memória dos 3 mil mortos de Nova York quanto dos 30 mil do Iraque merece ser poupada desse papo furado. Concordo com você em pelo menos uma coisa. A região onde você mora tem há décadas sido vítima de ingerências brutais do Ocidente. Tem fundamento o teu ressentimento. Mas quero te lembrar de um paradoxo assustador que acompanha a história. Em certas situações, a vítima pode produzir uma ideologia ainda mais assustadora que a de seus algozes.

A ira das vítimas

Já reparou quantas atrocidades vieram acompanhadas de um discurso mal ajambrado de ex-vítima? Hitler subiu ao poder dizendo que a Alemanha tinha sido humilhada pelo Tratado de Versalhes e que os judeus dominavam o país. Stalin, Mao e tantos outros ditadores sempre encarnaram os paladinos da "massa vitimada". E em nome dela cometeram horrores inomináveis.

Essa mesma lógica perversa opera ainda hoje em níveis até agora mais contidos, mas que nem por isso deixam de ser abomináveis. Os EUA de Bush, com todo aquele tamanho, também posam de vítima. E colocam um expansionismo sanguinário na carona da luta contra o overhypado "terrorismo internacional" que você, criminoso útil, representa.

Outro inimigo teu que reza essa cartilha é a Israel de Ariel Sharon, que vê na defesa legítima do território concedido por leis internacionais em 1947 o direito de violar as leis internacionais de 2004, impondo terríveis sofrimentos coletivos, enjaulando um povo em sua própria terra. E acreditando que a condição de vítima dos momentos mais sombrios da história dá alguma imunidade às críticas sóbrias de hoje.

Vocês podem até ser inimigos, Osama, mas têm um raciocínio bem parecido. Os fundamentalistas suicidas crêem que injustiças sofridas, terríveis que sejam, justificam a explosão de famílias em restaurantes. Comum a todos vocês, vítimas, "vítimas", há uma ideologia de fato suicida, que não só ataca outros povos, mas no fundo ataca o próprio.

Vide anti-islamismos, semitismos e americanismos tão crescentes hoje. Para onde quer nos levar esse juízo? Não entendo. Tenho medo de entender. Agora, apesar de ainda não estar tomando antidepressivo, quero acreditar que pessoas de massa cinzenta menos bi-cromática sejam maioria no mundo.

No Brasil, EUA, Iraque, Israel, China, Alemanha, em qualquer país. E que elas acabem ficando cansadas do império dessa lógica obtusa, cega para o óbvio de que o sentido possível nessa vida sem sentido é só o de viver bem. Em paz.

Em nome dessas pessoas, Osama, quero colocar atrás da tua orelha a pulga de umas palavras ditas pelo Nietzsche, um tipo de profeta que nem você nem o Bush devem apreciar. Cuidado quando luta com os teus monstros, você pode se transformar num deles.

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