A direção do Brasil

O antropólogo Roberto Da Matta descobre no comportamento doentio dos nossos motoristas – em seu desrespeito às leis e ao outro – uma explicação para o estilo de vida brasileiro

por Ricardo Calil em

Em sua longa missão para entender o homem brasileiro, o antropólogo Roberto Da Matta se embrenhou, na década de 60, em aldeias indígenas dos gaviões e dos apinajés, no interior do Pará e de Tocantins. Hoje, aos 74 anos, ele acredita que pode ser mais revelador se enfurnar no Detran em Vitória (ES) ou ficar parado em um congestionamento na ponte Rio-Niterói.

Convidado pelo governo do Espírito Santo para coordenar uma pesquisa sobre educação no trânsito, o antropólogo saiu da experiência com um livro novo – Fé em Deus e pé na tábua: como e por que você enlouquece dirigindo no Brasil, que será lançado pela editora Rocco em outubro.

Para tentar compreender a epidemia de 40 mil mortes no trânsito por ano (o que nos torna o quinto pior país do mundo nesse quesito), o antropólogo foi até as raízes sociais do Brasil. Concluiu que nosso terrível comportamento nas ruas é fruto de uma sociedade que ainda não aprendeu a ser igualitária e a se libertar de seus traços aristocráticos. De uma elite que sempre rechaçou o transporte coletivo e que adotou o carro como símbolo de superioridade social. De uma crença irracional em uma proteção divina que compensaria os riscos corridos ao volante. De uma mentalidade hierárquica ainda regida pela lógica do “Você sabe com quem está falando?”, segundo a qual obedecer a lei é sintoma de inferioridade – conforme Da Matta já havia demonstrado no clássico livro Carnaval, malandros e heróis, em 1979.

Vítima do seu tema
Como intelectual, Roberto Da Matta sempre preferiu andar na contramão. No fim dos anos 60, quando muitos de seus companheiros protestavam contra a influência americana no país, o antropólogo de Niterói (RJ) rumou aos Estados Unidos para fazer mestrado e doutorado em Harvard. Por outro lado, enquanto outros tentavam entender o Brasil a partir de teses marxistas ou de estruturalistas franceses, ele resgatava o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, passava ao largo do conceito de classe social e tentava construir uma antropologia à brasileira, baseada na observação e compreensão de fenômenos locais como o Carnaval, o futebol, o jogo do bicho.

De 1987 a 2004, o antropólogo foi professor da Universidade de Notre Dame, em Indiana – e se tornou a voz mais ouvida pelos americanos para tentar entender o Brasil. Mas nunca tirou os dois pés de seu país natal. Voltava três vezes por ano e se abastecia de novas ideias. Até que cansou dos EUA e decidiu retornar de vez para morar em Niterói. “A sociedade americana tem coisas fantásticas, mas é uma chatice também. Não existe essa ideia de jogar conversa fora lá. Porque nada pode ser jogado fora, tudo tem que ser consumido.”

Da Matta voltou em 2004, entre outros motivos, para ficar perto dos filhos e netos. Mas teve de lidar com várias perdas na família desde então: o irmão mais novo morreu de câncer; o filho mais velho, comandante da Varig, sofreu um infarto fatal; a mulher chegou a um estágio avançado do Alzheimer. “Tudo isso me deu um sentido mais profundo dos acidentes trágicos da vida. Mas também me fez valorizar mais momentos felizes com a família, os alunos, os amigos do coração.”

“O trânsito reproduz valores de uma sociedade em que alguns podem mais que muitos”

Ele diz que foi salvo pela literatura e pelo trabalho – tanto o de professor da PUC do Rio de Janeiro como o de colunista dos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo. E por um cotidiano de pequenos prazeres, que inclui frequentar a academia de ginástica diariamente e cantar standards da canção americana no karaoke vez por outra.

Com 1 ano de idade em Manaus, com os pais (a mãe está segurando sua mão e o pai está ao lado dela) e familiares - Crédito: Arquivo pessoal

Da Matta abriu tempo na sua agenda para receber a Trip duas vezes: a primeira em seu escritório na PUC e a segunda em um desmanche de carros na zona sul de São Paulo, onde foi feita a foto que abre esta matéria. Nas duas vezes, foi vítima do tema de seu novo livro e ficou preso no trânsito. “Você olha para os lados e só vê uma pessoa em cada carro. É um absurdo. A gente vive esse delírio de que ser dono de um carro é o coroamento do sucesso individual. No fundo, estamos retomando a ideia do nobre carregado por escravos em uma cadeirinha no Brasil colonial.”

Você já estudou sociedades indígenas, carnaval, futebol, jogo do bicho. Por que decidiu fazer um livro sobre o trânsito agora? Eu comecei a refletir sobre essas questões do trânsito quando fui estudar em Harvard, em 1963. Eu tinha dois colegas africanos. Um deles, da Nigéria, me disse um dia que tinha descoberto um lance fantástico e me chamou para ir à rua mais movimentada de Cambridge [Massachusetts] com ele. Cada vez que ele colocava o pé na faixa de pedestres, os carros paravam. Eu, como brasileiro, fiquei espantado também. Fizemos essa experiência umas cinco vezes. Foi aí que eu comecei a pensar no trânsito como um exemplo das diferenças culturais e como índice de civilidade. Muitos anos depois, em 1985, eu escrevi uma série de artigos para a página 2 da Folha de S.Paulo e, na falta de assunto jornalístico e da moda, resolvi falar do trânsito. Inventei um personagem, o brasilianista americano Richard Moneygrand, para falar por mim. E fiz o Moneygrand afirmar que as pessoas precisavam parar de falar de economia e olhar o trânsito para entender o comportamento de qualquer país, sobretudo o Brasil. Alguns dias depois de o artigo sair no jornal, me liga o Detran de São Paulo pedindo o contato do Moneygrand porque queria convidá-lo para uma consultoria... Eu tive que explicar que eu era o Moneygrand e, depois de alguma perplexidade, eles acabaram me convidando para uma visita no lugar dele. Ao longo dos anos, eu voltei ao assunto algumas vezes nas minhas colunas no Estadão e O Globo, e recentemente o governo do Espírito Santo me chamou para coordenar uma pesquisa sobre educação no trânsito, e foi esse convite que deu origem ao livro Fé em Deus e pé na tábua.

E por que esse título? Porque esse ditado revela muito do estilo que nós, brasileiros, expressamos no trânsito. Temos essa crença de que somos protegidos por uma força superior, que nada vai nos acontecer de mal. E, se acontecer, existe uma vida depois da morte. Esse é o lado tradicional da história e do comportamento. E temos também o nosso lado moderno, amante da pressa e de correr riscos. Só que fazemos isso justificados por Deus, de modo que podemos ignorar as leis, os outros e as nossas próprias vidas. Até nossas músicas populares legitimam nossa irresponsabilidade ao dirigir. Veja, por exemplo, Roberto e Erasmo Carlos e o que eles escreveram em “As curvas da estrada de Santos”, “Eu sou terrível”, “120... 150... 200 km por hora”, que invocam o risco e a aceleração como partes da conquista amorosa.

O que você descobriu sobre o comportamento dos brasileiros estudando nossos motoristas? 
Que nosso comportamento terrível no trânsito é resultado da incapacidade de sermos uma sociedade igualitária; de instituirmos a igualdade como um guia para a nossa conduta. Nosso trânsito reproduz valores de uma sociedade que se quer republicana e moderna, mas ainda está atrelada a um passado aristocrático, em que alguns podiam mais do que muitos, como ocorre até hoje. Em casa, nós somos ensinados que somos únicos, especiais. Aprendemos que nossas vontades sempre podem ser atendidas. É o espaço do acolhimento, do tudo é possível por meio da mamãe. Daí a pessoa chega na rua e não consegue entender aquele espaço onde todos são juridicamente iguais. Ir para a rua, no Brasil, ainda é um ato dramático, porque significa abandonar a teia de laços sociais onde todos se conhecem e ir para um espaço onde ninguém é de ninguém. E o trânsito é o lado mais negativo desse mundo da rua. É doentio, desumano e vergonhoso notar que 40 mil pessoas morrem por ano no trânsito de um país que se acredita cordial, hospitaleiro e carnavalesco. No Brasil, você se sente superior ao pedestre porque tem um carro. Ou superior a outro motorista porque tem um carro mais moderno ou mais caro. Na pesquisa com motoristas de Vitória, a maioria dizia: “Eu bebi, eu sei beber e consigo dirigir assim”. E se outro tiver bebido a mesma coisa? “Aí não, né?” O bêbado, o barbeiro, é sempre o outro. O motorista não consegue entender que ele não é diferente de outro motorista ou pedestre, que ele não tem um salvo-conduto para transgredir as leis. No Brasil, obedecer à lei é visto como uma babaquice, um sintoma de inferioridade. Isso é herança de uma sociedade aristocrática e patrimonialista, em que não houve investimento sério no transporte coletivo e ainda impera o “Você sabe com quem está falando?”.

Você notou diferenças na pesquisa entre o comportamento dos motoristas de São Paulo e do Rio, por exemplo? A pesquisa foi feita na Grande Vitória, mas acho que a maioria dos resultados pode ser aplicada ao Brasil como um todo. Sobre as diferenças entre Rio e São Paulo, posso falar pelo que eu observo. E acho que os motoristas do Rio são muito mais agressivos que os de São Paulo, aceleram ainda mais, respeitam ainda menos as leis.

“No Brasil obedecer à lei é visto como babaquice, como sintoma de inferioridade”

Você fez o diagnóstico dos nossos problemas no trânsito. Mas você também aponta soluções? A solução é falar mais em igualdade, discuti-la, ensinar igualdade. Nosso lema sempre foi “os incomodados é que se mudem”. Precisamos mudar isso. Não é só uma questão de fazer novas leis, de multar e reprimir. Porque não adianta nada ter um Código de Trânsito melhor que o sueco, ter tecnologia americana e bulevares franceses se não temos suecos, americanos e franceses para honrá-los e segui-los. O motorista é brasileiro e não obedece às leis. A gente tem que preparar a sociedade para internalizar as normas no seu comportamento. Quando tentaram obrigar as pessoas a usar cinto de segurança em 1985, não adiantou muito porque as pessoas tinham acabado de sair de uma ditadura e não queriam que o governo dissesse mais o que eles tinham que fazer. Mais tarde, nos anos 90, apesar dos lobbies e das restrições de alguns setores, acabou dando certo porque as pessoas já estavam prontas para a lei. Mudaram por causa da lei? Claro. Mas porque viram que o cinto realmente protegia, o que deveria ter sido posto em primeiro lugar; a lei estava atrelada a uma prática social, em vez de estar contra ela.

Atlético, aos 15 anos - Crédito: Arquivo pessoal

Como explicar o caso da morte do filho da atriz Cissa Guimarães (skatista atropelado por um carro que fazia um racha num túnel em manutenção no Rio)? Em primeiro lugar, temos que ver que os dois lados se comportavam como pessoas relativamente especiais, porque estavam andando de skate ou de carro num lugar que estava interditado. Mas o mais importante nessa situação é, imagino, outro ponto: para quem o motorista ligou depois do atropelamento? Não foi para o socorro ou para a polícia. Foi para o pai, que tentou subornar a polícia. Ele tentou fazer valer a força do dinheiro, mas, para sua surpresa, havia a força da fama, e isso equilibrou a questão. Se fosse um jovem de favela atropelado ou dirigindo seria diferente. Isso reforça que continuamos a viver na sociedade patrimonialista de que falava Gilberto Freyre. Só que eu diria mais: estamos numa sociedade “familística” e ainda largamente aristocrática.

O governo Lula mudou algo nesse panorama?
Não, acho que as coisas pioraram em certo sentido. Acho que estamos vivendo uma república sindical, com o poder concentrado nas mãos de um pequeno grupo de pessoas e de empresas que se aproveitam das benesses do poder. E acho que o PT desmoralizou essa coisa que ele pregava do “não rouba e não deixa roubar”. Por outro lado, acho que estamos chegando finalmente à modernidade, com uma série de conquistas institucionais que vão permanecer independentemente dos governos. Ainda estamos longe de ser uma sociedade igualitária – como a americana, em que o ponto de partida em todas as situações sociais é que todos são iguais, mesmo quando não são. Mas o fato concreto e positivo é que o governo Lula domesticou o esquerdismo maluco nacional.

Você causou polêmica numa entrevista à TV dizendo que Lula era analfabeto. Era uma provocação? Era sim. A gente fala coisas no ímpeto. Mas eu queria chamar a atenção para essa história do Lula de não gostar de ler livros, de dizer que tem azia quando lê o jornal. Acho que é um péssimo exemplo vindo da nossa autoridade máxima. E acho que o sucesso do Lula tem a ver também com a culpa que a elite brasileira sente em relação a questões como o analfabetismo, por não ter feito nada para reverter essa tragédia educacional. Mas eu também disse que o Lula tem uma inteligência política e emocional raríssima. E isso implica aceitar, como eu aceito, que ignorância não tem muito a ver com discernimento político – como, aliás, revela a campanha do Serra e a postura dos tucanos em geral.

Em quem você vota para presidente? Acho que vou ter que votar no Serra. Meio a contragosto. Como assim você faz uma campanha de oposição sem criticar o governo? Foi proibido falar mal do Lula? Nunca teve mensalão? Quem fez Plano Real, que tem sido o responsável pelo equilíbrio macroeconômico do Brasil? Não era “herança maldita”? Por que o Serra não fala disso? Eu, sinceramente, não entendo. Se todos os candidatos forem continuístas, pra que eleição?

Você saiu dos EUA há seis anos. E, nesse meio-tempo, houve a crise econômica, que abalou a crença na solidez dos valores americanos. Você reavaliou seu pensamento sobre os EUA? Na verdade, eu já tinha feito minha crítica enquanto estava lá. Eu saí porque o Brasil não valoriza o professor, a gente ainda vive sob aquele ditado ridículo do “quem sabe faz, quem não sabe ensina”. Quando fui para Harvard nos anos 60, minha bolsa era maior que meu salário no Brasil. A sociedade americana tem coisas fantásticas, mas é uma chatice também. Eu tinha vizinhos de 10 anos que não me davam “bom-dia”, não convidavam para ir em casa, não existe essa ideia de jogar conversa fora lá. Porque nada pode ser jogado fora, tudo tem que ser consumido.

 

“Sem paranoia, sei que não gostam de mim na USP. Não sou citado pelos uspianos”

Você não acha que nós estamos importando esse modelo americano de consumo excessivo, principalmente nas cidades grandes como Rio e São Paulo, sem importar o conceito de igualitarismo? Ah, sem dúvida. Vou dar um exemplo. Eu sempre gostei de correr. Quando morava em Washington, uma vez estava correndo e vi o Bush filho, que era presidente na época, também correndo, com seguranças. Ele estava usando o mesmo Nike que eu. Aqui no Brasil, é mais difícil imaginar essa cena. Porque os objetos ainda refletem muito o segmento social da pessoa. O tênis, o carro, o restaurante não valem só pelo que eles são, mas como símbolos de status. É por isso que sai mais caro jantar no Rio ou em São Paulo do que em Nova York. E o que inflaciona também a marca de um restaurante é ser frequentado por celebridades. A gente está vivendo essa busca insana pela fama, o que no Brasil engendra privilégios e outros bichos.

Não te incomoda o fato de os dois principais candidatos a presidente se basearem num modelo desenvolvimentista, de acharem que produção de carro e de petróleo são sinônimo de sucesso? Claro que me incomoda. Eu vou para o Rio de carro pelo menos duas vezes por semana. Pego a ponte Rio-Niterói, olho os carros e quase todos só tem o motorista. É um absurdo. Em algumas cidades dos Estados Unidos, existe um desconto no pedágio para quem viaja com mais passageiros. Por que não tem isso na Rio-Niterói? Por que não tem em outros lugares do Brasil? A gente ensaiou uma onda de transporte coletivo na primeira metade do século 20, com trens e bondes. Mas aí chegou o sucesso da indústria automobilística nos anos 50, que criou o delírio de que ser dono de um carro é o coroamento do sucesso individual. E até hoje, mesmo com o mundo em colapso, não conseguimos nos livrar dessa mentalidade. Quando nós adotamos o transporte individual, estamos retomando a ideia da cadeirinha carregada por escravos do Brasil colonial.

Você tem muitos interlocutores estrangeiros respeitados. A visão deles sobre o Brasil melhorou, não? Muito. O país é finalmente visto por muita gente séria como um “global player”. E acho que eles estão certos: estamos mais preparados para a tal modernidade que nossos concorrentes, como a China, a Rússia, a Índia. Até porque temos a vantagem da língua única, não temos minorias linguísticas, culturais ou religiosas.

Servindo o exército brasileiro, mas "querendo servir o americano" - Crédito: Arquivo pessoal

E a volta ao país, como tem sido até aqui? Ah, tem sido boa. Voltei a morar em Niterói, a cidade onde nasci e que jamais abandonei, para ficar perto dos meus filhos e netos e ainda estar um pouco isolado do resto do mundo. Vivo com conforto, mas sem luxos. Até porque é isso que a vida de professor permite. Ser antropólogo, ter convivido com índios, viajado pelo Brasil sem recursos, te acostuma a viver com pouco. Fui muito bem recebido aqui na PUC, embora o ambiente acadêmico brasileiro me canse um pouco, porque é muita política, muita mentalidade de grupo, e eu tive uma trajetória meio solitária. Nunca pertenci a nenhum grupo político, não estudei em colégios de elite. Sempre remei contra a corrente. Sei, descontando a paranoia, que não gostam de mim na USP e não sou citado pelos uspianos. E também a academia tem essa coisa do especialista, de ficar repetindo teoria estrangeira: um cara que sabe tudo de Derrida ou de Foucault e quer aplicar na realidade brasileira a fórceps. Eu não consigo pensar dessa maneira. Tem sempre alguma coisa chamando minha atenção. Agora mesmo eu estou incentivando um aluno meu da PUC a fazer um trabalho sobre a etnografia da fila, porque o brasileiro se comporta na fila de um jeito que só existe aqui. Bom, fora isso, eu tenho enorme prazer de escrever minhas colunas para O Globo e para O Estado de S. Paulo. Não conta pra ninguém, mas eu poderia escrever de graça.

E além da vida profissional? Como é seu dia a dia, tem algum hobby? Vou à academia [a de ginástica, não a universitária] todos os dias, corro na esteira e faço um pouco de musculação. Depois, vou ao Rincão Gaúcho com um amigo da academia, tomo um Black Label com Club Soda, como sem excessos, só um pouquinho de carne e mandioca frita, que eu adoro. Fora isso, gosto muito de cantar, principalmente os standards americanos, Gershwin, Cole Porter. A gente tem uma banda aqui na PUC do Rio que se apresenta no fim do ano. E gosto de cantar em karaoke. Em São Paulo eu fui uma vez e botei pra quebrar. A qualidade de vida aqui no Brasil pode ser boa. Tenho um tio de 91 anos que ainda tem muque forte, ainda tem ereção. Preciso só arranjar uma namoradinha para ele.

Mas sua volta ao Brasil também foi marcada por muitas perdas... Sim, perdi meu irmão mais novo, economista, para um câncer. E meu filho mais velho, Rodrigo, que era comandante da Varig, morreu de infarto no meio da crise da empresa, em 2006, com 44 anos. Não existe nada mais terrível do que perder um filho. Ainda mais nessas circunstâncias, em que nada te antecipa. Eu acredito que foram as pressões e as incertezas que ele sofreu como comandante da Varig que causaram a morte dele. Tudo isso me deu um sentido mais profundo dos acidentes trágicos da vida. Mas também me fez valorizar mais momentos felizes com a família, os alunos, os amigos do coração.

A morte do seu filho influenciou sua visão do governo Lula? Sim... Acho que sim. Porque o governo Lula facilita para tantas empresas. No caso da Varig, o governo obviamente lavou as mãos. E reteve o dinheiro do fundo de pensão dos funcionários da Varig. A viúva e os filhos do meu filho não recebem o que ele investiu. Eu acho até que foi uma vingança do PT contra o fato de que a Varig foi uma empresa que floresceu no governo militar.

 

“Não há mulher como a brasileira. para elas, nosso pau é, no mínimo, normal”

Como você tem conseguido lidar com essas perdas? Com o trabalho, as aulas, as colunas. Eu posso dizer que a literatura me salvou. Eu tenho escrito e lido como nunca. Agora acabei o Paris é uma festa, do Ernest Hemingway. Uma maravilha. Tem ainda Dostoiévski, Freud, Thornton Wilder e, sobretudo, Thomas Mann. E o cinema também. Eu admiro muito os filmes do Frank Capra, como A mulher faz o homem e A felicidade não se compra. Acho que eles nos ensinam muito sobre o lado positivo do liberalismo americano, sobre as opções que o capitalismo, mesmo o mais selvagem, nos apresenta. Eu dou um curso no qual discuto esses filmes com meus alunos de graduação. Penso que todo político brasileiro deveria assistir.

Você tem religião? Ela ajudou em algo? Fui criado católico pelos meus pais. E eu gostaria de acreditar, mas não consigo.

Em Deus? Sim, num deus personalizado, na religião, numa eternidade do ego ou da alma vista como uma entidade individual. Mas acredito na compreensão e no amor contra o sofrimento e a morte. A terapia freudiana tem me ajudado muito. Eu também estou lidando com outra situação muito difícil. Minha mulher, Celeste, com quem sou casado há 48 anos, está com Alzheimer. Ela está perdendo sua alma, sua personalidade, a capacidade de classificar e discernir. Por isso eu te digo: se você achou uma boa mulher, com quem você combina, com quem transa bem, aproveite muito. Porque você não entende a falta que ela faz até ela ir embora. E a Celeste foi uma grande companheira. Ela nunca teve problemas para se embrenhar na mata comigo para ir atrás de índios ou se mudar para os Estados Unidos sem falar inglês.

Ela foi sua primeira mulher? Sim, eu perdi a virgindade com ela. Eu já tinha tentado com as chamadas profissionais, mas não tinha conseguido, ficava como um menino vendo tudo o que o feminino em carne e osso me apresentava, com a maravilha que é o corpo de uma mulher. Meus pais eram irmãos de criação que se casaram lutando contra as surpresas dos seus padrastos. Eles eram filhos de dois viúvos que se uniram e tiveram outros filhos. Eu nunca vi meus pais se beijando, apesar de meu pai ter um ciúme enorme da minha mãe. Acho que isso contribuiu para as minhas dificuldades com as mulheres. E a Celeste foi extremamente generosa quando eu confessei minha inexperiência. Não existe mulher como a brasileira. Eu li que o [escritor americano F. Scott] Fitzgerald uma vez chamou o Hemingway ao banheiro e perguntou: “Você acha que meu pau é pequeno?”. O Hemingway deu uma olhada e disse: “Não, é normal. Por quê?”. “Ah, porque a Zelda [mulher dele] me disse que é pequeno quando fica duro.” Aí o Hemingway: “Isso é sacanagem das mulheres para deixar os homens inseguros”. E não é que depois um amigo americano me contou que a mulher dele tinha dito exatamente a mesma coisa? A mulher brasileira nunca faria isso! Para elas, nosso pau nunca é pequeno; é, no mínimo, normal [risos].

Você já experimentou drogas? Maconha, só duas vezes. Não gostei. Nunca mais. Eu entendi por que os americanos usam a palavra “stoned” [que quer dizer “chapado”, mas é uma derivação da palavra “stone”, pedra]. Parecia que havia uma pedra na minha cabeça, ela pendia prum lado, depois pro outro. Foi uma vez no Rio e outra nos Estados Unidos. Um sueco ofereceu maconha pra minha mulher. Ele estava a fim de comer ela. Mas se deu mal. Ela não quis fumar, eu fumei. Depois fiquei sabendo que o sueco tinha convidado minha mulher pra tomar banho com ele. Celeste sempre foi muito bonita; e o sueco era um sacana.

De onde veio seu interesse pela antropologia? Eu sou filho de um fiscal de consumo que ficou mudando de cidade durante minha infância e adolescência, entre Niterói, Maceió, São João Nepomuceno, Juiz de Fora. Eu sempre fui bom aluno, mas era o sujeito deslocado. Acho que esse estranhamento, esse ser obrigado a se ajustar a uma nova realidade, a entender o outro para além do normal, acabou me levando para a antropologia. A família da minha mãe era de Manaus, de uma Manaus rica e idealizada por causa da borracha. Ela também se sentia estranha nesse ambiente de Niterói e interior de Minas. Ela gostava de tocar piano, sonhava com Paris. Não foi à toa que, com 20 e poucos anos, eu fui para os Estados Unidos e para Paris. Acho que eu criei um desejo de ficar famoso, de me tornar internacional, para compensar as frustrações da minha mãe. No começo, eu queria me tornar escritor. Mas depois vi que eu poderia satisfazer meu desejo de ficção com a antropologia. Às vezes você observa a realidade e cria uma teoria na sua cabeça. É um pouco como o trabalho do escritor.

Com a esposa, Celeste, e os três filhos, em frente à casa de Piratininga, em Niterói - Crédito: Arquivo pessoal

O que o tempo vivido entre indíos lhe ensinou? Que há mais diferenças e mistérios entre as culturas, línguas e sociedades do que imagina a nossa rasa mentalidade universalista e iluminista. Entre os índios gaviões e apinajés eu experimentei, mais do que vi, que o mundo não é plano nem raso.

O que ainda falta fazer? Estou escrevendo uma ficção baseada nas minhas memórias. Seria um livro do ponto de vista de netos que escrevem sobre o avô. Vou colocar nele muitas histórias que vivi como antropólogo, das minhas viagens ao interior do Brasil. Mas vou romancear, trocar nomes. Bom, fora isso, tenho que cuidar da minha mulher e tenho que resolver as pendências judiciais da morte do meu filho, para garantir o conforto da minha nora e de meus netos. Eu tenho a sensação de que não posso morrer, porque tem muita coisa para fazer ainda. É uma sensação ótima.

 

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