Ressurgido das águas
O surfista Mark Occhilupo, ex-viciado em drogas no auge da carreira, hoje largou até a junk-food
Surfista desde os 9 anos, Mark Occhilupo é uma espécie de fênix das pranchas. No auge da carreira, se envolveu com drogas, encarou a depressão, passou meses jogado no sofá, engordou e, depois de tudo isso, em uma reviravolta triunfal, tornou-se campeão mundial de surf em 1999 justamente na etapa do Brasil. Hoje, aos 47, deixou a junk-food e as substâncias químicas para trás e se assume viciado em apenas uma coisa: televisão, que vê na companhia dos dois filhos. “Gosto especialmente dos telejornais e do Ellen Degeneres Show.” O australiano, que no início dos anos 80 encarou o mar havaiano de 10 a 15 pés e depois de alguns caldos chegou à final do Pipe Masters, nunca mais deixou de ir ao arquipélago, que visita regularmente para surfar. É de lá, mais especificamente de Pipeline, que ele conversou com a Trip sobre a vida marcada por extremos. “Você precisa gostar muito da sua própria companhia para aguentar essa vida.”
No início dos anos 1990 você teve depressão, problemas com drogas, ganhou muito peso e parou de surfar. Como foi a volta por cima que o tornou campeão em 1999, aos 33 anos? Passei mais de um ano sem levantar do sofá, só comendo batata frita e outras porcarias. Cheguei a 111 quilos. Um dia, meu patrocinador entrou em casa, me viu no sofá e disse: “Sério, Occy, não posso mais te pagar para ficar aí”. Então tive de levantar outra vez.
E como foi a retomada? Eu morria de vergonha do meu corpo. Estava tão gordo que só surfava escondido. Depois passei a correr, retomei a ioga, passei a comer peixe e salada. Antes acordava, comia cereal achocolatado, almoçava frango frito e batata frita. E qualquer coisa congelada no jantar.
O que você faz atualmente? Eu ainda trabalho para a Billabong. Comento transmissões on-line, participo de surf camps e cuido de alguns eventos infantis da marca na Austrália.
Não pensou em ser treinador? Nunca fiz isso na vida, mas adoraria. Mas teria que treinar a mim mesmo antes de dizer a outra pessoa o que ela deve fazer. Adoro dar dicas a jovens profissionais. Tudo grátis.
Há algum alimento que você considera veneno hoje? Fui vegetariano por dois anos, mas voltei a comer carne porque sentia muita fraqueza. Hoje considero junk-food uma espécie de veneno, mas ainda como uma vez ou outra.
E quanto às drogas? Eu nunca gostei disso, mas parece que o problema é como uma doença mesmo. Tem gente que experiementa quando é jovem e não se vicia. Acho também que existem muitos tipos diferentes de drogas. Não estou aqui falando de maconha. As pessoas não pensam nas pílulas para dormir e no Valium e elas são um problema sério.
Você começou com elas? Sim, eu viajava muito. Todos os dias estava em lugares diferentes e acabei ficando dependente das pílulas para dormir, do valium e de coisas das coisas eu não gosto nem de falar. Tive que deixar isso para trás, mas foi um período muito difícil. Chega um dia em que você tem que fazer uma escolha entre o mundo real e um outro mundo para onde essas substâncias te levam.
E cocaína? Não gosto de falar nisso. Tive problemas com a cocaína, sim, mas ainda acho que o perigo estava no calmante e nos analgésicos. Hoje, quando tenho problemas para dormir, uso medicamento natural. Se estou com dor nas costas, tento fazer alongamento e repouso.
Você dividia o problema do vício com alguém? Não. Quando você usa algo desse tipo você tenta esconder das pessoas porque já´sabe o que elas vão dizer e sabe também que não consegue fazer o que precisa ser feito para parar. Minha primeira mulher me deu muita força e foi ela que me fez procurar um terapeuta. Frequento até hoje por causa da depressão e acho que foi o melhor caminho porque aquela pessoa te escuta e não vai sair por aí falando de você.
Você sofre com isso atualmente? Eu tento manter a depressão longe, mas não é uma escolha. Minha psiquiatra tem que ficar de olho e checar se está tudo bem. Quando larguei o circuito depois de ganhar o título mundial eu não estava drogado, eu estava deprimido. Você se habitua a competir e a vencer, e quando isso some é bem deprimente.
Há muita fofoca no mundo do surf? Acho que como em qualquer outro esporte. Mas eu faço de tudo para ficar longe disso. Quando saí do circuito tenho certeza que houve muita fofoca a meu respeito, mas eu não quero nem saber.
Durante as viagens você se sentia sozinho? Bastante. Quando você viaja muito seu melhor amigo é você mesmo. Já fiquei muito sozinho em quartos de hoteis e aviões. Você precisa gostar muito da sua própria companhia para aguantar essa vida.
Quem são seus melhores amigos hoje? Meu filho. Ele é puro, inocente. No mundo do surf tenho alguns como Joel, Mick, mas atualmente todos eles estão muito ocupados. Joel tem três filhos, mas sempre tentamos manter contato. Tenho também um amigo muito antigo, Richard Cram. Crescemos juntos e ele é um parceiro. Ele mora em Sidney, eu vivo na Gold Coast, mas nos falamos sempre ao telefone e eu posso desabafar com ele. Tenho também alguns amigos de festa, que encontro por aí.
Você foi um cara namorador? Amar outra pessoa quando se tem esse estilo de vida também é um problema. Fui casado duas vezes e posso te afirmar que manter um casamento viajando tanto beira o impossível. Você pode conseguir muitas garotas, mas chega uma hora em que você quer uma garota com a qual você se sinta confortável, que você possa trocar carinho, conversar, beijar. Isso sempre foi um grande problema pra mim. Aliás, ainda é.
Sente medo de morrer? Sinto e penso nisso todos os dias antes de dormir. As pessoas sempre dizem que a melhor maneira de morrer é fazendo algo que você ama, mas eu discordo. Não gostaria de morrer surfando.
Acredita em sorte? Sou talvez uma das pessoas mais supersticiosas que você conheça. Quando eu competia, achava que tudo que acontecia era um sinal para dizer se eu ia ou não ganhar. Sou obcecado pelo número 6. Em dia de competição, se o carro que ia me buscar não tinha 6 na placa, eu achava que ia perder. Nasci no dia 16 do mês 6 de 1966. Até hoje eu reparo se existe esse número nas casas ou em quartos de hotel.
E carrega algum patuá? Eu já usei. Mas hoje sinto que espiritualmente fico mais forte se não houver colares, aneis e até tatuagem entre meu corpo e o mar. gosto de estar o mais natural possível para me misturar com o oceano e a mãe natureza.
Você é religioso? Sou católico. Sei que não deveria ser tão supersticioso sendo católico, mas não consegui me livrar disso. Rezo antes de dormir e ao acordar.
"Quando larguei o circuito, depois de ganhar o título mundial, eu não estava drogado, estava deprimido"
Já pensou em desistir alguma vez? Das garotas?
Não, do surf, por causa das garotas! (gargalhadas) Nunca. O surf ultrapassa tudo isso. Mesmo quando eu fico triste por causa dos relacionamentos, posso olhar o mar como fiz hoje aqui em Pipeline e depois de pegar uns tubos, volto para a areia e fico mais feliz.
Qual o seu momento mais inesquecível aqui no Noth Shore? Foi no início dos anos 80, quando fui convidado para o Pipe Masters. O mar estava grande, talvez com uns 10 ou 15 pés e eu estava com muito medo, mas depois de uns caldos acabei pegando boas ondas e cheguei até a final. Foi como um rito de passagem, porque eu sabia que depois daquele dia eu nunca mais deixaria de vir ao Havaí para surfar.
E o pior momento que você já viveu aqui? Lembro de uma vez em que tive que surfar contra Sunny Garcia no WCT. Ele brigava por seu primeiro título mundial. Quando eu cheguei ao país, todos os havaianos me diziam que eu tinha que deixa-lo ganhar. Foram dias de muita pressão e ameaças. O localismo era pesado.
Que tipo de pressão? Eu recebia mensagens no meu telefone do tipo: se você estiver pensando em bater o Sunny é melhor arrumar as malas e voltar logo para casa porque vamos acabar com você. Foi então que eu conheci um amigo que costumava sair com o Sunny e achei que ele seria o único cara que poderia me dar uma opinião razoável sobre tudo aquilo. E ele me disse: Aconteça o que acontecer não deixe o Sunny ganhar porque ele tem que merecer o título, ele tem que vencer pelos próprios méritos. Naquele dia o mar estava com 10 pés, o Sunny quebrou duas pranchas e uma onda veio pra mim. Tive que surfa-la. Quando cheguei próximo à praia pensei... Meu Deus, o que eu fiz! (leva as mãos ao rosto).
Ele ficou bravo? Sunny é um bom amigo e um bom atleta e quando ele saiu do mar ele me deu a mão e disse parabéns. Eu respondi que estava me sentindo muito mal e ele disse que não havia problema. Em 2000 ele ganhou o título e ficou tudo bem.
"Eu sou realmente viciado em televisão, especialmente os telejornais e o Ellen Degeneres Show. Não consigo controlar a vontade de ver o programa dela (risos)"
Há alguma coisa que você goste mais de fazer do que surfar? Ficar com os meus filhos é o que me faz mais feliz, mas eu também amo assistir televisão. Eu sou realmente viciado em televisão, especialmente os telejornais e o Ellen Degeneres Show. Não consigo controlar a vontade de ver o programa dela (risos). Também amo cantar.
Você gostaria de ser cantor profissional? Adoraria. Esse ano acompanhei um cantor chamado Pete Murray. Nós fizemos uma viagem de barco com outros músicos e eu os invejei. Gosto de cantar, mas acho que vou ter que continuar apenas no karaoke.
Tom Carroll foi o primeiro surfista a assinar um contrato milionário no surf. Você lida bem com dinheiro? Não. Cheguei a fazer bastante dinheiro quando era jovem, mas deveria ter tomado mais cuidado. Gastei por aí com amigos e ajudei minha mãe depois que meus pais se separaram. Na minha época de profissional, um pouco era muito, hoje os garotos fazem muito mais grana. Mesmo assim, toda vez que eu ia ao caixa eletrônico havia dinheiro lá, então nunca me preocupei com aplicações. Jogava o dinheiro na conta e tudo bem. Mas depois comprei minha casa e perdi uma boa quantia ao me separar da minha primeira mulher, e agora da segunda.
Seus filhos são do segundo casamento? Tenho dois filhos com a minha última mulher, mas a minha primeira esposa tinha um filho. Eu o vejo sempre, ele até me chama de pai, mas não é meu filho biológico, é do coração.
Sua primeira mulher, Beatrice Ballardie, morreu em um acidente de carro. Como foi esse período da sua vida? Nós estávamos separados há dois anos. Eu estava na Gold Coast porque ia competir naquele final de semana. Recebi uma ligação do filho dela dizendo que eu tinha que correr para o hospital porque ela estava em coma e ele estava desesperado. O fim do nosso relacionamento foi muito difícil, mesmo assim eu fiquei todo o tempo segurando suas mãos no quarto, mas ela pegou uma infecção na boca, que se espalhou e não resistiu.
O que mudou na sua vida depois dessa experiência? Mudei por dentro. Eu a amava e ela foi a mulher que estava ao meu lado quando ganhei o meu primeiro título mundial no Brasil. Ela adorava o seu país e vinha comigo todo ano. Bea fez muito por mim durante o período em que fiquei fora do “tour”, e me ajudou a dar a volta por cima quando mais precisei.
Você já foi o ídolo de uma geração. Quem são os seus? Uau...No mundo do surf acho que o Kelly Slater seria um deles. O que ele fez e continua fazendo é incrível, ele é mesmo um alien, como dizem. Fora do mundo do surf acho que o Bob Marley. Eu concordo e procuro seguir tudo o que ele diz em suas letras. Eu sei todas as canções.
Quão perto o Brasil está de um título mundial? Muito perto. Kelly é meu ídolo, mas Gabriel Medina é meu surfista favorito. Ele é um “freak”, suas manobras aereas são inacreditáveis e ele não deixa de arricar. Quando existe uma boa onda ele vai lá e inventa algo novo. Se existe alguém que é bom tanto na água quanto no ar e merece ganhar, esse alguém é ele. Ele é um dos melhores surfistas que eu já vi desde sempre.
O Kelly deve se aposentar para dar espaço para os mais jovens? Eu não sei...Durante as finais eu ouvi algumas pessoas no palenque dizerem que ele não surfa mais como antes, mas dois minutos depois você podia escutar o público gritando na areia com as ondas que ele surfava. Ele está totalmente em forma, todos querem ve-lo e seria uma lacuna para o evento perdê-lo.
Quem é o próximo Kelly Slater? Gabriel Medina. Com certeza. Ele é mais criativo e um pacote completo. Se não for o Gabriel eu diria que talvez John john Florence. Eles são jovens e dão tudo de si.
Como você se vê aos 80 anos? Estou com 47 anos, quase 50! Sou o tipo de cara que vive um dia após o outro, sem grandes planos, então vez ou outra reparo nos meus amigos mais velhos e não consigo me imaginar daquele jeito. Tenho achado essa coisa de envelhecer algo bem estranho. Adoro dormir e dizem que quanto mais você envelhece, menos você quer dormir. Acho que serei um daqueles caras tranquilos na varanda da minha casa na austrália comendo algo saudável e olhando o mar. Adoro viajar, talvez eu faça viagens ao Brasil, fique um tempo por lá. Eu adoro o seu país.