Respire fundo
Big riders e a apneia, uma técnica que aprendemos com os grandes mamíferos marinhos
Respire fundo. Agora conte até 300, lentamente, sem respirar. Não conseguiu, não é? A surfista Maya Gabeira e outros big riders conseguem. Tudo graças à apneia, uma técnica que aprendemos com os mamíferos marinhos
Taiti, 27 de agosto de 2011. Campeonato Billabong Pro, quinta etapa do Mundial de Surf. Uma ondulação gigante atingiu Teahupoo, a praia com o sugestivo nome de Crânios Quebrados. Foi a deixa para os big riders entrarem em ação, incluindo a brasileira Maya Gabeira, dona de quatro prêmios XXL, o Oscar das ondas grandes. Mas Maya caiu. Tomou uma, duas, três, quatro, cinco ondas seguidas na cabeça. Enquanto era jogada de um lado para o outro no pior caldo de sua vida, a jovem de 24 anos, que sofre de asma, temia pelo pior, até que foi resgatada pela equipe de salvamento. Especulações sobre ela abandonar o esporte começaram a pipocar na mídia. Kelly Slater, assustado, tuitou sobre o ocorrido.
Maya saiu do acidente, porém, apenas com alguns ralados no corpo. E uma certeza: estava na hora de aprimorar sua apneia, a habilidade de ensinar pulmão e mente a se comportarem melhor em situações em que o oxigênio é escasso e o estresse é alto. Em outras palavras, é o que pode nos tornar um pouco mais parecidos com os mamíferos marinhos, que, apesar de respirarem como nós, são capazes de ficar horas submersos.
“A apneia virou uma arma fundamental para a sobrevivência no meu esporte, além de me dar mais confiança para surfar ondas ainda maiores”, ela conta. Com a ajuda de seus patrocinadores, Maya participou de cursos no Havaí com os melhores instrutores do mundo. “Minha vida mudou. Ficava dois minutos e meio debaixo d’água; hoje fico o dobro. Comecei também a praticar mergulho livre [sem o auxílio de tanques de oxigênio] e atualmente chego a 90 pés de profundidade.”
Outros big riders brasileiros também têm cultivado seu lado apneísta. Rodrigo “Monster” Resende, por exemplo, revela que se interessou pela técnica quando assistiu ao filme Imensidão azul, de Luc Besson, que narra a disputa entre dois mergulhadores desde seus tempos de infância. Cinco anos atrás, matriculou-se no curso apneia para o surf, na escola carioca Brazil Divers, onde foi treinado pelos mergulhadores Paulo de Tharso e Ricardo Bahia.
Baleia-azul
Com dois caldos severos no currículo tomados em Mavericks (temido pico na Califórnia), em que foi socorrido já inconsciente, Rodrigo acredita que hoje conseguiria escapar ileso. “Sei hiperventilar o pulmão, recuperar o ar, aumentar a absorção dele. Tripliquei minha apneia depois do curso. Agora consigo descer a onda preocupado apenas com o meu surf”, diz.
Em São Paulo, quem se destaca no ramo é Christian Deckeker. Chris, como é chamado, hoje com 43 anos, descobriu que era bom em apneia aos 20 e concorria a uma vaga de salva-vidas no extinto parque aquático The Waves. Ninguém acreditou quando atravessou a piscina e voltou para a mesma borda sem respirar. Chris ganhou o emprego, e mergulhou fundo no assunto. Em pouco tempo, sua apneia já era de quatro minutos e meio, enquanto a literatura da época dizia que o limite humano era de três.
Formado em educação física, ele se juntou a dois médicos para transformar sua experiência em trabalho científico. Nascia assim o MSR (Método de Simulação da Realidade). Chris explica melhor: “São aproximadamente 1.600 exercícios, que simulam natação, remada, apneia propriamente dita, ginástica funcional e musculação. Tudo debaixo d’água. Nadadores, maratonistas, ciclistas e principalmente surfistas se beneficiam dele”.
O primeiro curso que deu para surfistas foi realizado em 2003, com Romeu Bruno, Formiga e Sylvio Mancusi na turma. O objetivo das aulas, ele diz, “é ensinar o aluno a fazer apneia com o coração saindo pela boca”. Este repórter foi a uma e comprovou: é exatamente isso que acontece. Começa-se fazendo exercícios de concientização da respiração. Em seguida vem a apneia propriamente dita, aumentando os tempos de “bloqueio” (ficar sem respirar) progressivamente. Depois é a vez de práticas de aumento da resistência: pular na piscina, soltar todo o ar dos pulmões, sair da água e pular novamente, consecutivamente; remar 100 metros em cima da prancha; vestir uma nadadeira semelhante ao rabo de uma baleia e nadar submerso o máximo de tempo que conseguir... Não é moleza.
Para criar o MSR, Chris teve de estudar a fisiologia de alguns animais, a fim de entender por que os golfinhos, por exemplo, conseguem chegar a 600 metros de profundidade enquanto o recorde humano é 214 metros. “A apneia serve para aprimorarmos uma habilidade que para esses animais é natural. O sistema respiratório é quase igual. A diferença é que os pulmões são mais preparados e o sangue tem mais mioglobina, portanto eles transportam o oxigênio mais rápido e conseguem armazenar quantidades maiores. Uma baleia-azul respira por dez minutos e fica embaixo d’água por até duas horas.”
Aquawoman
O ser humano que chegou mais perto das baleias-azuis é uma recifense de 43 anos, moradora de Florianópolis. Ela se chama Karol Meyer e já ficou inacreditáveis 18 minutos e 32 segundos debaixo d’água sem respirar. A façanha está na edição de 2009 do Guinness. Há quem critique seus métodos (antes de entrar na água, a atleta inspirou oxigênio puro de balões, o que, dizem, dobraria sua capacidade), mas fato é que até agora ninguém ultrapassou a marca. No total, Karol é detentora de oito recordes mundiais – o mais recente foi conquistado em maio, quando atingiu 68,9 metros de profundidade na modalidade Skandalopetra.
Em média, você levaria 12 minutos para ler este texto. Durante todo o tempo, Karol Meyer poderia estar sem respirar debaixo d’água – e ela ainda teria mais seis minutos de sobra
Quando não está na água, Karol pode ser encontrada numa agência da Caixa Econômica Federal, onde trabalha no balcão de atendimento. Para complementar a renda, ela ainda dá palestras motivacionais em empresas e ministra cursos de mergulho e apneia. “Os recordes dão pouco dinheiro. E pouquíssimas empresas topam patrocinar o esporte, uma vez que alguns dos melhores atletas do mundo morreram justamente enquanto o praticavam”, ela justifica. (O exemplo mais recente é do congolês Patrick Musimu, recordista mundial de mergulho livre em profundidade, que faleceu na piscina de casa no ano passado. A principal suspeita é que ele estava treinando apneia sozinho.) A própria Karol já apagou algumas vezes. “Mas sempre tinha gente para socorrer. Não dá para treinar sem acompanhamento nunca!”, ela avisa. “Não tem muita bibliografia sobre o assunto. Então as descobertas têm que ser feitas mesmo na base da tentativa e do erro.”
O que se sabe desde o final da década de 1960 é que, tal qual os mamíferos marinhos, o ser humano também tem um reflexo de imersão, que é ativado sempre que afundamos o corpo. Trata-se de um mecanismo que reduz o fluxo sanguíneo nos órgãos mais resistentes (pele, músculo, intestino) e aumenta nos órgãos mais importantes (cérebro e coração), permitindo-nos ficar mais tempo submersos. As alterações são qualitativamente semelhantes aos nossos amigos do mar, porém quantitativamente menores. O glorioso Fagner já cantava: “Quem me dera ser um peixe...”.