Rashid encontra a própria voz

O rapper paulistano, que acaba de lançar a última parte do disco Tão Real, fala das experiências da geração que cresceu ouvindo Racionais MC’s

por Pedro Alexandre Sanches em

Aos 31 anos, o rapper paulistano Michel Dias Costa, o Rashid, está no auge do processo de descoberta da própria voz. Seu último álbum, Tão Real, é um flagra desse pleno amadurecimento poético e melódico e coroa uma trajetória que passou pelas periferias de São Paulo e da pequena cidade de Ijaci, no interior de Minas Gerais. Ao lado de amigos como Emicida e Projota, Rashid faz parte de uma geração rapper que cresceu ouvindo os recados cantados à juventude negra pelo Racionais MC’s. Eram tempos de mudança, quando jovens negros começaram a ter mais acesso à experiência universitária – não foi o caso de Rashid, que aprendeu ritmo e poesia nas ruas, na igreja evangélica onde trabalhava sua avó e nos livros.

Em posse do próprio discurso, o artista elabora letras sofisticadas em seu disco mais recente, dividido em três temporadas – a última delas lançada em janeiro deste ano. Na música “Todo Dia”, ele afirma que, conquistas e aprendizados à parte, a rotina continua integralmente dividida entre a luta e o estado de luto. “O Brasil inteiro não está de luto. Deveria. Mas uma boa parte está, sim, com certeza”, afirma. Na entrevista a seguir, Rashid solta a voz para falar sobre racismo, origens, influências, a vivência na Rinha dos MCs e o duro momento político brasileiro. 

Trip. Você usa um codinome árabe. Quais são suas origens?

Rashid. O nome árabe não tem uma razão específica, a não ser a similaridade dos traços. Emicida, que é meu amigo de adolescência, sempre me falava que eu tinha cara de árabe. É mais comum as pessoas que descendem de europeus saberem sobre sua ancestralidade. Do povo preto, é muito difícil. É uma coisa que se perdeu no processo histórico, então não tenho noção das ramificações do DNA do Rashid. Só sei que, dentro do país, a parte paterna veio da Bahia e a parte materna de Minas Gerais. A parte negra da minha família é a materna. Minha avó cresceu em Três Pontas, que é a cidade do Milton Nascimento, e eles chegaram a brincar juntos. Ela cresceu em condições adversas, numa coisa meio análoga à escravidão.

Você nasceu na zona norte de São Paulo e foi para Minas Gerais jovem. Como a música entrou nessa história? Com 12 para 13 anos fui morar em Ijaci (MG) com a minha mãe. Voltei para São Paulo prestes a fazer 18, sob o pretexto de trabalhar e estudar. Só que eu já estava muito certo do que eu queria na vida: fazer rap. Meus pais são separados desde que me dou por gente. Por coisas da vida, meu pai já tinha outra família formada e não pude morar com ele, então acabei indo morar com a minha avó, mãe dele. Minha avó era caseira da igreja evangélica. Isso foi bom, porque usufruí bastante da biblioteca da igreja. Não tinham só livros religiosos. Li muita coisa clássica, tipo O Alienista, do Machado de Assis, ou O Pequeno Príncipe. Estudei alguma coisa de música ali na igreja e cheguei a tocar no conjunto de louvor. Tocava percussão, bem sem saber, com meu instinto. O pastor era supertradicional e morria de preconceito porque eram instrumentos africanos. Tinha a cabeça toda torta. Mas eu toquei. 

Emicida fala que aprendeu com pastores não o conteúdo, mas a forma do discurso. Você também tem essa influência? Sem dúvida. Vi muitos pastores bons e ruins. Vi pastores com uma superpostura no púlpito, que seria o palco pra gente hoje. Aprendi muito observando o jeito como tratavam os fiéis. É interessante isso. Se diz que o Tupac trouxe muito do jeito de falar do Martin Luther King pro flow dele. Acho que isso acontece com a gente naturalmente.

Isso significa que você é religioso? Não dá pra dizer que sou religioso. Sou espiritualizado. Tenho fé, acredito em Deus, em Cristo, então dá pra dizer que sou cristão ainda. Mas não frequento a igreja. Morro de vergonha dos cristãos que vivem falando besteira, pregando contra a vida das pessoas. Não sei que Jesus Cristo eles conheceram.

Qual é sua formação musical? Não estudei música. Todo o meu aprendizado foi ouvindo, tentando, praticando. Minha primeira parada foi tentar compor. Nos meus 13 anos já estava tentando escrever rap, mas obviamente era tudo muito ruim. A primeira ideia é conseguir rimar, e daqui a pouco você está enchendo o final do caderno de rimas. Todo o discurso que eu tinha eram as coisas que eu tirava das músicas dos Racionais, RZO, DMN. Encontrar a sua própria voz é um processo, é demorado. Sem saber, aquelas coisas que ouvi estavam ajudando a formar minha própria opinião. Depois conheci a rima de improviso, que aqui no Brasil se assemelha muito ao repente. Na igreja, minha grande neurose era dominar o tempo musical. Na época, bombava a Banda Calypso, e eu tentava rimar em cima das músicas deles pra ver se o tempo musical estava entrando na minha mente.

E o rap? O primeiro disco que eu ouvi sabendo que era rap foi Sobrevivendo no Inferno (1997), do Racionais MC's, quando tinha 11 ou 12 anos. Depois ouvi um rap mais underground, mais lado B, na virada dos anos 2000. Foi uma cena que começou a ficar muito forte com Kamau, Parteum, Marechal. Depois veio o grupo SP Funk com o disco O Lado B do Hip-Hop. Esses caras viraram total a chave da nossa cabeça. Eu era um MC de batalha, mas não se usava o estilo de rima das batalhas nas músicas. Considero que a minha geração, ou pelo menos a minha turma – Emicida, Projota, eu –, é muito uma mistura desses dois tipos de rap: um pouco do rap gangsta do cotidiano da quebrada e esse rap mais underground, que trazia metáforas, falava do jazz.

Como surgiu a Rinha dos MCs para você? Quem apresentava a Rinha dos MCs era o Criolo, junto com o DJ Dandan. O pessoal do Pentágono organizava, Rael fazia parte desse grupo. É absurdo que boa parte dos nomes que estão tendo destaque neste momento estavam todos lá: Rael, Criolo, Emicida, Projota, Flora Matos. A primeira vez que fui na Rinha foi porque Criolo convidou Emicida e eu estava junto com ele. Era uma sala na zona sul, na Cidade Dutra, cabia pouquíssima gente. Não tinha palco e você subia na cadeira pra poder ficar acima do nível da plateia. A gente ficava num cagaço na hora de rimar. Foi uma baita escola de como lidar com o público, segurar um microfone, cantar com um equipamento sem gritar. Não tinha cursinho pro rap. Foi uma escola pra tudo. 

De que trata o rap “Não Pode”, do seu último disco? Essa letra nasceu de uma frase do Pharrell Williams num disco do Jay-Z, na música chamada “So Ambitious”. Ele fala: a minha motivação são eles me dizendo o que eu não posso ser. Essa frase ficou martelando na minha cabeça, e não preciso dizer das semelhanças com as coisas que a gente vive aqui no nosso país, ainda mais agora. É quase um grito de guerra: “não pode, não pode/ de onde cê vem, com a cor que cê tem, não pode”. A gente cresce condicionado a acreditar que as coisas não são feitas pra nós. Se você é pobre, preto, pardo, você é excluído automaticamente de uma gama de coisas que pertencem ao cidadão comum, mas não a você. 

Qual é sua experiência com racismo? Ih, tanta coisa. Passei por muita coisa, inclusive dentro de casa, com uma parte da família negra e outra branca. Você chega na parte branca e o pessoal diz: “não, você é moreninho, cor de jambo”. Essa coisa da cor de jambo, what a hell? Todo mundo é preto. Meu irmão por parte de mãe não tem essa mistura, é bem mais retinto que eu. Uma vez, ele chegou chorando, falou que tinha cansado de ser preto porque as pessoas ficavam zoando ele na escola. Imagina o que é um adolescente tentando provar pro seu irmão criança que ele não é um sub-humano porque ele é preto. Vivi muito dessa confusão racial, indo de um lado pro outro da família miscigenada. Você vê que os relacionamentos mestiços vêm muito da cultura de tentar embranquecer o país. Quando vê as coisas dessa perspectiva, você fica num lugar perdido, numa beira de um penhasco. É um lugar delicado de estar. 

Por que na música “Todo Dia” você usa um duplo sentido para a palavra luto? Quando o disco estava tomando forma, vi que não estava tocando tanto nos assuntos políticos, não estava com esse tom de ataque, muito por causa dos traumas da última eleição. Estava indo pra um outro lado, de expressão do meu eu. “Todo Dia” tem muito a ver com o que a gente tem pensado e passado. Vivemos em constante estado de luta e em constante estado de luto, pelas perdas constantes. Às vezes a gente está em estado de luto porque vemos os rumos que a sociedade está tomando. 

O Brasil está especialmente em luto agora? O Brasil inteiro, não. Deveria. Mas uma boa parte está, sim, com certeza. Estamos indo ladeira abaixo politicamente. Como seres humanos, como sociedade humana, a gente está falindo. Onde um líder de Estado diz as coisas que diz sobre os pretos, as minas, os gays, e tem gente batendo palma, achando que está certo? Não, a gente está falhando miseravelmente como sociedade. Black Alien tem uma frase foda: “sem eu não vai ter nós”. Tão Real parte um pouco desse princípio. A gente está sempre na linha de frente das coisas, tá ligado? Enquanto preto, de periferia e do rap, estou sempre na infantaria dos conflitos. E às vezes a gente tem falhado com o indivíduo, com a gente mesmo. 

“Bem Loko” tem uma abordagem particular do tema do alcoolismo. De onde vem? Infelizmente, pra quem é de quebrada, é muito comum ter vários familiares com problema com álcool. Queria falar disso sendo o menos moralista possível. Por isso falo em primeira pessoa, entro na pele do personagem. Não sou eu, eu não bebo, mas tanta gente à minha volta tem problema com isso. Falo do meu tio que perdeu o emprego e gastou no bar a rescisão inteira, é fato. Um tio assassinado na porta de bar, é fato. São muitas coisas. Não é pra ser um julgamento, estou me colocando no lugar da pessoa. Sei que ninguém vai ouvir e parar de beber no outro dia, mas ali ficou uma semente. 

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Imagem principal: Moysah / Divulgação

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