Justiça seletiva

por Juliana Gonçalves

Rafael Braga, preso, se tornou a síntese dos dois pesos e duas medidas do sistema judicial brasileiro

Dia 1º de agosto foi mais um dia de ver a justiça se ausentar. A primeira Câmara do Tribunal de Justiça do Rio analisou o pedido de habeas corpus de Rafael Braga, que busca o direito de responder em liberdade ao processo em que é julgado por tráfico de drogas.

O pedido foi assinado pelos advogados Lucas Sada, Carlos Eduardo Cunha Martins, Ednardo Mota de Oliveira Santos e João Henrique de Castro Tristão, membros do Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH), que tem feito a defesa de Rafael. Dois desembargadores, dentre eles a relatora Katya Monnerat, votaram pela manutenção da prisão, antes do desembargador Luiz Zveiter pedir vistas, adiando a conclusão do caso. Sada, em conversa com a Trip, disse acreditar que a decisão final possa sair entre uma semana e quinze dias.

Cheio de contradições, o caso tem ganho mais atenção da sociedade, incluindo de artistas como Emicida e Clarice Falcão. Manifestações de apoio passam também por declarações de políticos brasileiros e reverberam até internacionalmente — a ativista norte-americana Angela Davis, em recente passagem pelo Brasil, fez coro aos pedidos de liberdade a Rafael Braga, assim como integrantes de vários coletivos internacionais, como o Black Lives Matter, que participaram de ações online pela causa.

Essa ampla rede começou a se formar já em 2013, imediatamente após a sua prisão. Na linha de frente de cada manifestação sempre está a militância negra, a exemplo da campanha 30 dias por Rafael Braga, realizada ao longo do mês de junho, com atividades culturais e rodas de conversa.

Mesmo assim, uma grande parte da opinião pública parece ignorar Rafael. Para Sada, a amplificação desse debate seria essencial para pressionar o judiciário a libertar o rapaz. “A justiça costumava dizer que o clamor social que envolvia um caso criminal recomendava a prisão. Pode ter um fato grave, uma cobertura midiática intensa, e aí se entendia a necessidade de dar uma resposta a essa mobilização social determinando a prisão preventiva dessas pessoas. Nesse caso, o clamor social é inverso: é pela libertação do Rafael”, disse o advogado.

O início de uma tragédia pessoal que é social

Em 2013, durante as manifestações de junho, enquanto o “gigante” acordava na “festa da democracia”, apenas Rafael Braga, então um catador de material reciclável, foi preso e condenado. A prisão ocorreu na região central do Rio de Janeiro no dia 20 de junho daquele ano, próximo ao local de uma manifestação, por portar duas garrafas plásticas ainda lacradas, uma com água sanitária e outra com desinfetante. A acusação sustentou que ele portava material explosivo e que teria a “intenção” de fabricar um “coquetel molotov”.

O laudo técnico utilizado na sentença, no entanto, amplamente divulgado pela mídia, daria conta que as substâncias teriam “ínfima possibilidade de funcionar como coquetel molotov”. Ele foi preso por ter “intenção” e por portar um desinfetante e, por isso, foi condenado a 5 anos de prisão, onde ficou, inicialmente, até dezembro de 2015, quando teve a prisão relaxada e o direito a responder ao processo referente aos protestos em casa.

Em janeiro de 2016, porém, Rafael foi abordado por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) de Cascatinha, Vila Cruzeiro, na zona norte do Rio, onde morava com sua família. A polícia afirma que ele estava com 0,6 g de maconha, 9,3 g de cocaína e um rojão. Por isso, foi acusado de envolvimento o com tráfico. Braga nega o porte de todos os elementos. Em um processo cheio de lacunas, no entanto, ele foi condenado em 20 de abril de 2017 pelo juiz Ricardo Coronha Pinheiro a 11 anos e três meses de reclusão e ao pagamento de R$ 1.687. A única base para a condenação foi o depoimento dos policiais. Embora usasse uma tornozeleira eletrônica com GPS desde sua libertação, os dados contidos no sistema de monitoramento não foram sequer investigados no processo.

A seletividade do judiciário

Rafael Braga na prisão se tornou a síntese da seletividade da justiça, dos dois pesos e duas medidas. “O Judiciário mantém a justiça a serviço de quem detém o poder, o dinheiro e o patrimônio”, afirma Douglas Belchior, da Frente Alternativa Preta.

Um dos exemplos recentes dessa seletividade penal veio à tona em julho. Breno Borges, jovem branco, filho da presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Mato Grosso do Sul, a desembargadora Tânia Garcia Freitas Borges, foi preso carregando, junto com outras pessoas, em dois carros, 130 quilos de maconha, uma pistola nove milímetros e 199 munições de fuzil calibre 7.62, de uso exclusivo das forças armadas. Mesmo assim, após cerca de quatro meses na prisão, Breno ganhou o direito de responder em liberdade — direito que segue sendo negado sistematicamente a cerca de 40% dos presos brasileiros. A diferença das sentenças chama ainda mais atenção comparando as tais 0,6 g de maconha, 9,3 g de cocaína e o rojão de Rafael ao arsenal de Borges e seus 130 quilos de maconha.

Débora Maria Silva, do Movimento Mães de Maio, considera que as prisões de Rafael foram racistas e classistas. “A guerra às drogas não existe, [existe] sim a guerra a cor e a classe social. As prisões são senzalas", afirma. Na visão de Lucas Sada, a política de drogas focada no pequeno traficante ou usuário é puro placebo. “Serve para exercer um controle social violento sobre uma parcela muito específica da nossa população e não para realmente acabar com o comércio de substâncias ilícitas”, analisa o advogado.

Apesar da condenação em primeira instância, Sada defende que não existe nenhum motivo para que Braga seja mantido preso preventivamente. “Rafael, embora tenha condenações anteriores, é acusado de portar pequena quantidade de drogas, foi preso sozinho, sem armas, sem oferecer resistência. Então não tem nenhuma gravidade especial para a conduta que está sendo imputada a ele”, argumentou ao salientar que essa descrição cabe a muitas pessoas que estão hoje na prisão.

Uma história comum

A dura realidade vivida por Rafael ultrapassa as fronteiras do Brasil. O documentário americano 13ª emenda, produzido e dirigido por Ava Durvey, relaciona a escravidão ao encarceramento em massa nos Estados Unidos. Lá, há uma história semelhante a de Rafael — Kalief Browder foi detido após sair de uma festa e a fiança de US$ 10 mil dólares não pode ser paga pela família pobre do rapaz.

Ele ficou preso por três anos, dois numa cela solitária. Depois, todas as acusações contra ele foram retiradas por não terem embasamento e Browder foi solto. Dois anos depois, ele se enforcou no Bronx. O jovem negro tinha 22 anos de idade e não conseguiu suportar a injustiça que viveu. Esperando um final positivo para história de Rafael Braga, há inúmeras manifestações para que sua vida e história não se findem no cárcere.

Créditos

Imagem principal: MídiaNinja

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