Quero que a copa do mundo seja uma bosta
O futebol foi sequestrado pelas grandes corporações
O futebol foi sequestrado pelas grandes corporações. Dá nojo ver os jogadores em uniformes repletos de marcas. Mesmo assim, me pego diariamente mostrando os jogos da seleção para meu filho de 6 anos
Sempre que recebo mensagens de leitores indignados com algo que escrevi entro em crise. Deveria ter pensado mais um pouco antes de me colocar como o provocador que não gosto de ser. Começo a questionar não só o que escrevi, mas a própria utilidade da minha presença no mundo. A verdade é que sou, acima de tudo, carente e escrevo porque quero ser amado. Por isso meus dedos hesitam ao escrever um texto com o título herético acima. Quero que a Copa seja uma bosta?
Tento mudar o curso desta história. Escrevo sobre minha amiga Mia, uma adorável italiana que há 25 anos luta contra um inclemente câncer de gânglios linfáticos. Sofreu tanto que agora decidiu desistir. Parou de se medicar e se internou numa clínica para doentes terminais. Pegou sua senha para o além e está lá paradinha na cama, esperando que o anjo da morte a venha buscar. Enquanto ele não chega, falamos diariamente no Skype. Semana passada ela pediu para eu tocar no violão “O leãzinho”, do Caetano Veloso. Ontem ela percebeu que eu estava de mau humor. Quis saber por quê. Evitando me lamentar para quem está à beira da morte, mudei de assunto. Mas, querendo se divertir, ela implorou para saber. Quando contei que minha mulher me deu uma puta bronca porque eu perdi um cachecol de cashmere que ela me deu semana passada, a Mia riu tanto que quase arrancou a sonda que drena o líquido que sai do seu pescoço. Não sei se nossas conversas são terapêuticas para a Mia. Para mim são com certeza. Nunca imaginei que a morte pudesse ter um lado tão meigo e lindo.
Nossa civilização é burra e covarde em questões de morte. O princípio da nossa relação com a morte é a negação. Mas como, com certeza absoluta, vamos todos morrer, mais cedo ou mais tarde, nosso fim deveria ser matéria nas escolas desde o jardim de infância. As crianças deveriam ser levadas para visitar hospitais, asilos e necrotérios para aprender a encarar o inexorável. É muito mais importante do que matemática ou ortografia. Cioran, o brilhante filósofo e ensaísta romeno, acerta em cheio quando sugere que nosso grande desastre não está na perspectiva da morte, mas, sim, no fato de termos nascido. Cioran define o nascimento e a própria vida como “um evento ridículo”.
ESPÍRITO DE PORCO
Mas já disse o que queria dizer sobre a Mia e sobre a morte. E o título da coluna já está lá em cima. Quem não gostar que escreva seus desaforos. Que queime meus textos e filmes numa Noite dos Cristais.
O futebol foi sequestrado pelas grandes corporações. Sinto raiva ao ver os jogadores e a equipe técnica das seleções usando uniformes repletos de marcas. Isso é só o sintoma de um mal bem maior. Ricos e pobres, somos todos escravos do dinheiro. O conúbio do big business com a política corrupta é simplesmente um ultraje. No Brasil e no mundo. Por isso às vezes me pego querendo muito que os jogos sejam, sim, perturbados por demonstrações e boicotado pelo público. Nesse meu devaneio de espírito de porco, chego até a desejar que o Brasil seja eliminado pela Argentina numa oitava de final e que esta última seja campeã. Que me queimem vivo em um auto de fé.
Mas esta raiva da Copa é um sentimento complexo, contraditório e efêmero. Me pego diariamente mostrando os grandes jogos da seleção no YouTube ao meu filho de 6 anos. Com narração ufanista do Galvão Bueno e tudo mais. A coisa me emociona profundamente. Na hora do vamos ver, concluo que não é verdade que eu queira que a Copa seja uma bosta. Uno meu grito sedento de glória ao clamor apaixonado da nação. Futebol no campo é mais, muito mais importante do que política. Vai, Neymar! Vai, Neymar! Marca seis de uma vez e deixa mais um caneco em casa! Futebol quando é bom é infinitamente mais importante do que a vida e a morte.
*Henrique Goldman, 51, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles.