Quem perdeu o controle?

Longe da televisão, Fabio Assunção reflete sobre o controle exercido na vida do artista

por Fábio Assunção em

  - Crédito: Karina Tavares
  - Crédito: Karina Tavares

 

Distante da televisão por problemas privados que se tornaram públicos, o ator Fábio Assunção reflete sobre uma cultura em que a vida do artista se tornou mais importante do que sua obra e na qual cada uma de suas ações é controlada, julgada e explorada

Na ópera I Pagliacci, de Leoncavallo, uma trupe de atores chega para apresentar uma comédia num povoado de uma pequena província italiana. Na apresentação, há um triângulo amoroso entre Colombina, Pagliaccio e Arlecchino, que espelha outro triângulo entre intérpretes desses personagens – a tal ponto que a “ficção” da comédia começa a se embaralhar com a “realidade” dos atores. Essa ópera é um exercício de metalinguagem, de cena dentro da cena. Um jogo curioso, por jogar um holofote no mundo privado dos criadores. Lançaram mão desse recurso artistas de todas as áreas, na literatura de Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade, na pintura de Munch e Velásquez, no cinema de Woody Allen, Hitchcock e Kurosawa. A metalinguagem é um caminho desejado pelo autor para se colocar um pouco mais ao olhar do outro, derrubando essa fronteira, chegando mais perto. Eu sou fã desse movimento e me divirto me sentindo cúmplice dessa íntima exposição.

Mas uma coisa é você se colocar dentro da sua obra, se tornando parte dela. Outra é a sua vida ser colocada sobre sua obra, tomando conta dela. Esse limite hoje em dia está mal delineado. Casamentos, separações, doenças, acidentes, declarações, agressões, percentual de gordura, tudo é mais importante do que aquilo que se produz. É como se, em vez de admirar os quadros de Van Gogh, eu só conseguisse saber que o pintor sofria de depressão e, após passar por clínicas e cortar uma orelha, se matou aos 37 anos. Isso é ou não é reflexo de uma sociedade que se pretende normativa, cada vez menos original, menos genial, inflacionada por leis de controle?

Estamos assim tão debilitados para não conseguir agir por bom-senso, fio condutor da ética? Não temos conhecimento nem critério para tomar as melhores decisões? Precisamos de controle em tudo? Não se pode sustentar tanta regra o tempo todo. Onde extrapolamos? Onde se encaixam nossas imperfeições nessa tentativa de controle total que procura a perfeição? É necessário criar uma lei que obrigue os donos de estabelecimentos a colocar um cinzeiro do lado de fora, nas calçadas, ou farão alguma coisa a respeito por iniciativa própria? É preciso que uma norma obrigue os bares a servir cerveja sem álcool? Não seria razoável encontrá-las mais facilmente?

Como manifestar o descontrole presente em todo homem dentro desse novo mundo? Acho que as duas coisas não se encaixam. E, quanto mais desencaixam, melhor fica para os humoristas de plantão – e para o nosso olhar cada vez mais habituado a se alimentar de futilidades. Que contradição: queremos perfeição e nos lambuzamos com as imperfeições dos outros. Os humoristas de hoje perdem a mão confundindo humor com bullying. Se alguém tem um teto de vidro, ele será explorado, ofendendo a dignidade dos homens. Isso pra mim não é humor, é mediocridade. E rimos disso?

Ser humano hoje exige conduta pessoal impecável, e isso não é tarefa fácil para ninguém. Claro, não falo de ser um bom cidadão; eu me refiro ao fato de que hoje nem gordo você pode mais ser livremente. Tudo é motivo para jogar suas questões aos ventiladores, sem respeito à liberdade de errar a mão no processo de aprendizado individual e com o risco de se tornar alvo de censura velada pelas páginas dos novos fabulários em circulação, principalmente nos mal-usados espaços da internet.

A vida está ficando séria por ter virado piada. Nunca valeu tão pouco. Liberdade e respeito aos poucos vão saindo de cena, e questões que deveriam ser abordadas na dramaturgia são escritas em paralelo nessa nova forma de arte, nosso reality show perverso e controlador.

Nossas pálpebras ainda que fechadas não conseguem mais deixar de ver aquilo que não se quer ver. Elas estão perdendo a função de limitar a fronteira do privado. Aliás, o privado está em extinção. Mas os homens não. A quem recorrer nessa hora? Ao serviço de proteção aos animais? Mas que espécie de animal estamos nos tornando?

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