Quase morri
J. R. Duran relata uma curiosa experiência de sensação de quase morte
Meus pés subiram mais alto do que meu nariz, e o barulho que meu crânio fez ao receber o impacto do chão foi o mesmo som de um coco ao encontrar uma superfície de concreto
Puxando pela memória e fazendo as contas, posso dizer que nesta altura dos acontecimentos, se não me engano, deveria estar morto. E não uma vez só. Várias.
Me lembro de uma delas, por exemplo. Da manhã ensolarada em que escorreguei no chão do camarim aqui do estúdio. A moça da limpeza era nova, quis mostrar serviço e passou uma cera que deve ter encontrado no mesmo lugar que os organizadores dos campeonatos de curling compram seu material. O resultado – um chão brilhante como nunca – era visualmente impactante, e as consequências também o foram. A escorregada se transformou em uma pirueta digna de desenho animado. Meu corpo desafiou a gravidade. em câmera lenta, os meus pés subiram mais alto do que meu nariz, as paredes da sala deram uma cambalhota e o barulho que meu crânio fez ao receber o impacto do chão de granilite está, até hoje, gravado cristalinamente em minha memória. É o mesmo som que produz um coco no momento que encontra uma superfície de concreto, depois de ter se despedido do coqueiro em que estava pendurado. Lembro também que tudo apagou por alguns segundos. milésimos, diria eu. Mas, antes que alguma força do além começasse a passar o filme da minha vida, uma outra força dentro de mim decidiu que aquela não seria a minha hora. Abri com força os olhos, com a certeza de que uma mancha de sangue se formava embaixo de minha cabeça.
Nada disso.
Seco. O chão e minha cabeça estavam secos, o sol brilhava e os raios se filtravam através dos vidros opacos da porta de entrada. Coloquei meu corpo em pé e encarei – incrédulo – as pessoas à volta. Foi tudo tão rápido que ninguém teve tempo de desenhar qualquer tipo de reação (lembro das figuras e da situação, mas não das caras, por incrível que pareça; a modelo com os cabelos enrolados em bobes de plástico e o cigarro na mão, o cabeleireiro com o secador ligado e a produtora que entrou na hora e não entendeu o que eu fazia deitado no chão). E como não passei recibo do acontecido, o resto das pessoas que aquele dia estavam no estúdio nunca soube do que aconteceu. Ou poderia ter acontecido.
Descargas elétricas
Fiquei por dois meses sentindo pequenas descargas elétricas intermitentes entre a caixa craniana e a pele embaixo de meus cabelos. O neurologista que acompanhou o scan do meu exame me disse que era normal. Só fiz o exame 20 dias depois da escorregada; no dia seguinte ao acontecimento, tive de embarcar para Salvador. Por dez dias fotografei seis megamodelos brasileiras para a edição de maiôs da revista americana Sports Ilustrated. Ponderei, na hora, que se fosse para um médico ele me manteria de repouso e me faria entrar na fila de exames. Arrisquei. Hoje, toda vez que vou à praia e cruzo com um vendedor de cocos, me lembro que, de acordo com a contabilidade da vida, já estou no lucro.
*J. R. Duran, 55, é fotógrafo e escritor (www.twitter.com/jotaerreduran)