Quando a Vida exige

por Luiz Alberto Mendes em

                          ATÉ  O  FIM

 

Preciso, a todo momento, provar a mim mesmo que não há nada a temer. Que sou forte e tenho a alma animal. Vivi tantos anos (décadas) sendo desvalorizado, minimizado, que careço de me convencer, a cada desafio, que sou capaz de encarar e mesmo que tenha dúvidas, enfio os peitos. Quebro a cara constantemente, é preciso dizer. Mas, na minha idade e com minha experiência de vida, tenho afinado minha sensibilidade e aprendido a amenizar esses prejuízos. Então jamais me machuco excessivamente.

Bem, não até agora, como futuro é apenas conjunto de instantes vividos, até lá então... Estou procurando me manter preparado para o pior também, embora lute desesperadamente pelo melhor. Ainda sou desses idiotas que acredita que é possível ser feliz, e mesmo que for infeliz, ainda assim vale a pena. 

Às vezes a substância líquida e insossa da vida me assusta. Não sei mais se sou um homem tecendo minha vida, ou é o artesanato da vida me entrelaçando em seus fios tênues. Conheci um grupo enorme de jovens aqui, no bairro encostado ao que moro. Conhecer pessoas hoje é meu grande barato. Aos poucos, fui conquistando confiança e amizade. A princípio, eu era uma grande curiosidade para eles.

A criminalização dos jovens na periferia é um processo lento, mas progressivo. A luta para conseguir um emprego é séria. Não há trabalho para quem ingressa no mercado de trabalho. Claro, sempre há o “quebra-galho”, o “bico”.

O “bek” é inevitável. É quando, ali entre amigos e iguais, amortecem suas tristezas, frustrações e se divertem. Quase todos se conhecem desde crianças. As meninas, quase todas, já são mães. Andam, notívagos, pelos bairros circunvizinhos, em busca de outros grupos de jovens. Ao se encontrarem, é festa. Beijos, abraços e fortes apertos de mão. Ninguém tem nenhum tostão no bolso, mas o “bek” novamente aparece como que por encanto. Vaguei com eles algumas noites insones.

O mundo me ameaçava com excessos de atenção. Aquilo me desfocava, causando angústia. Enquanto isso as prisões tremiam, rebeladas e meu coração ficava pequeno. Às vezes tinha a nítida sensação de estar lá, esperando a PM atirando e espancando barbaramente. A guerra aqui fora me deixava sem saber o que pensar. Será que todo mundo havia enlouquecido? As ruas desertas comunicavam pânico. O clima da morte encharcava a vida de gravidade. 

Uma das garotas se aproximou de mim. Veio me pedir para que ajudasse sua amiga. Eu não havia percebido. A garota estava no olho do furacão, como eu estivera inúmeras vezes. Contou-me, com a voz sumida, que tinha dois filhos. Moravam com os pais. O pai das crianças estava faltando com a pensão há 3 anos. A mãe queria colocá-la para fora de casa com as crianças. Motivos? Nem sei se há motivos para que pais coloquem filhos para fora de casa, sabendo-os com filhos pequenos e sem recursos sequer para sobreviver.

Sim, ela gosta da gandaia. Ama sua liberdade. Quer ficar a noite andando com seu grupo de amigos. E, pior, estava novamente grávida. Havia dúvidas quanto a quem seria o pai. Havia contado os dias e não tinha certezas. Quando nascesse, saberiam. Era mais uma que me procurava querendo dinheiro para comprar a pílula abortiva. E agora? O que eu poderia fazer com uma situação dessas? Sou pobre, como todo escritor que vive de escrever neste país. Não dava para driblar a garota, não consigo mais ser insensível. Só havia uma saída. Pagar o deposito do aluguel da casa que ela e as crianças careciam. Comprar fogão, camas, colchão e mantimentos para um mês.

Seria um sacrifício. Precisava comprar roupa de verão para meus filhos, mas não havia como ficar indiferente e muito menos omisso diante a gravidade dos fatos. Compreendo a morte, a natureza ensina. Mas o nascimento e a vida estão além da minha capacidade de compreender. Lido com fatos, efeitos, nesse caso, e reverencio a vida como Albert Schweitzer.

As pessoas não acreditariam, mas o que aconteceu naquela semana de terror em São Paulo era previsível e muitos alertaram, inclusive eu. A bomba que fora jogada ao ar, não sairia do casulo para virar borboleta e sair flutuando no ar. Cairia, explodindo com toda sua intensidade.

Hoje cedo a garota veio me procurar. Estava feliz. Havia procurado aquele que seria o mais provável pai da criança que iria gerar e este acolhera com alegria a notícia. Queria que ela fosse morar com ele, junto com seus filhos. Senti alívio: ela e as crianças estariam amparadas. Tirou peso enorme de sobre meus ombros. Sabia que o que iria fazer não se sustentaria no tempo. Não tenho condições econômicas de arcar com outra família. Mas teria que fazer, não havia outra saída: iria para o sacrifício.

Fiquei feliz comigo mesmo sem ter feito nada. Sabia que faria minha parte e que iria até o fim.

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Luiz Mendes

31/05/2006.

   

    

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