A chamada telefônica me acordou. Cheio de sono, atendi meio que aborrecido, sem ter idéia de quem fosse àquela hora da madrugada. A voz era de minha sobrinha; a mãe dela havia acabado de falecer. O choque de 220 volts me acordou de vez. Nem tive dúvidas; vesti a primeira roupa que encontrei e zarpei para lá. Há cerca de três meses haviam detectado câncer no pulmão da cunhada. A cirurgia era impossível. Entraram com o tratamento de quimioterapia imediatamente; estavam já na terceira sessão. Ninguém esperava um desfecho tão imediato. Todos ligados a ela imaginávamos que aquilo iria demorar e a teríamos entre nós por um tempo indefinido. Casos de pessoas que estavam tratando do tumor a anos e outras que haviam se curado, nos eram mostrados constantemente.
A minha preocupação, e da maioria das pessoas envolvidas, já que contra a morte nada se podia fazer, era minha sobrinha. Carla é filha única, sem pai e extremamente apegada à mãe. As duas eram como carne e unha; não davam nenhum passo sem se comunicarem. Ligavam-se ao celular muitas vezes ao dia, por qualquer (ou até sem) motivo. Eram quase irmãs. Claro, discutiam como todo mundo, mas era somente na hora, dali a minutos já se procuravam como se nada houvesse acontecido.
A sobrinha foi me buscar no metrô. Parecia muito abalada, mas sob controle. No caminho foi me narrando. Acordara de repente com algum pressentimento; antes de ir ao quarto da mãe, foi ao banheiro. Ela a encontrou lá, caída de joelhos. Já havia falecido, mas o corpo ainda estava quente. Carla se apavorou, chamou o padrasto e ambos colocaram a mãe em sua cama. Chamaram a Emergência e não demorou para que os paramédicos constatassem o óbito. Chegamos e eu fui encontrá-la na cama. Olhei e não era mais a Silvia, minha cunhada. Ali estava apenas um corpo esticado. A mulher cheia de vitalidade e disposição que eu conhecera já havia partido.
A sobrinha não suportou mais e desabou a chorar em meu ombro. Tentei amparar, consolar, mas só consegui envolver Carla em meus braços e apertá-la forte contra o peito. Procurei acariciar seus cabelos, dizer doces palavras, mas a mão se prendia nos fios do cabelo e a voz embargava... Por dentro eu chorava também, cheio de compaixão pela nossa "menina"(ela tem cerca de 40 anos). Acompanhei-a em todos os momentos e para todos os cantos e lados. Os trâmites do velório, o atestado de óbito e a sólida burocracia que envolve isso tudo. Ao final e ao cabo da maior canseira, eles acabaram por pagar (e caro) uma propina para que as coisas fossem agilizados e o corpo da cunhada pudesse ser enterrado naquele mesmo dia.
No velório, uma multidão. Não sabíamos que Silvia era tão querida. O pessoal da escola onde ela trabalha, conhecidos, vizinhos, parentes longínquos foram fazer sua ultima visita à amiga que se fora. Foi até bonito. Quando descemos com o caixão para o enterro propriamente dito, dois cães desses vira latas, nos acompanharam. Quando chegaram onde ficaria a cunhada, eles sentaram-se em cima do túmulo e ali ficaram, inamovíveis. Desceram o caixão fechado e colocaram no lugar já antes estabelecido. Os pedreiros lacraram a cripta, e os cães não arredavam pé dali. Todos no enterro ficaram muito impressionados. Os cães pareciam querer proteger o túmulo e prestar uma homenagem à sua protetora.
Todos ali presentes sabiam da extrema dedicação de Silvia aos cães. Particularmente aos cães de rua, aqueles que ninguém queria. Adotou vários, arrumou muitas adoções com suas amigas que, em sua maioria, também são pessoas que amam cães. Elas, as "cachorreiras", estão interligadas em redes da internet e fundaram até ONGs protetoras de animais às quais são associadas. Silvia e a filha, não conseguiam ver um cão abandonado na rua sem tomar uma atitude em prol do animal. Alimentavam, davam água e cuidavam; elas salvaram a vida de muitos cães, pagando veterinário com seu próprio salário. Todas as veterinárias e pets de sua região (Jardim Tremembé) a conhecem e lhe têm estima. Juliana, a veterinária "oficial" de minha cunhada, estava lá no enterro e foi ela quem salientou a presença protetora dos cães no túmulo. Agora mesmo há três cães que foram recolhidos da rua e adotados, na casa de minha sobrinha, que ficaram de herança da Silvia, para nós cuidarmos.
Acabou o enterro, fomos saindo e os cães também. Este foi o meu primeiro enterro. Estava preso em outros enterros familiares. Francamente, não houve nada de feio, de escandaloso e nada que deslustrasse. Não dá para gostar, afinal, perdemos um familiar querido, mas houve uma certa beleza, uma entrega e principalmente muito amor e carinho. Ela partiu em paz.
Utilizamos cookies essenciais e tecnologias semelhantes de acordo com a nossa Política de Privacidade e, ao continuar navegando, você concorda com estas condições.