Profissão: ouvir

Tem sempre um profissional pronto para captar a vossa mensagem

por Anna Virginia Balloussier em

Ninguém se escuta? Mais ou menos. Tem sempre um padre, uma prostituta, uma ouvidora, uma manicure e um taxistas prontos para ceder um ouvido amigo.

 

Omar, o padre

Omar Raposo, 35, está sempre “na escuta”. Sua frequência é de longo alcance: “Estou aqui para ser os ouvidos de Deus”. Padre Omar é o guardião do Cristo Redentor e responsável pela capela Nossa Senhora Aparecida, aos pés da estátua de concreto e pedra-sabão de 635 toneladas e 30 metros no topo do Morro do Corcovado, no Rio. 

Lá em cima o burburinho é multilíngue: num dos pontos turísticos mais famosos do mundo, os pedidos de socorro vêm em “help”, “ayuda”, “à l’aide” etc. Outro dia mesmo, o sacerdote encontrou um venezuelano cabisbaixo. “Reclamava sobre o que está acontecendo no país, que estava abandonado, que faltava papel higiênico. Me pediu que rezasse pelo país”, diz com tom solene. 

De uma mulher que, assim como ele, trabalha nas alturas, ele nunca esqueceu. A aeromoça da Air France estava hospedada num hotel de Copacabana e viu o Cristo da janela. Sentiu um “toque no coração” e foi para lá com uma caixinha pequena, do tamanho de um livro, nas mãos. “Eram as cinzas da filha dela, que morreu num acidente. Dei a bênção, e ela pediu para lançar a filhinha lá do alto.” 

Omar coordena a Pastoral da Escuta, serviço voluntário para dar “estabilidade emocional” aos fiéis, e um canal on-line pelo qual a pessoa relata o perrengue e o padre pensa nela ao rezar o pai-nosso que estais a 709 metros acima do nível do mar.

Omar está sempre "na escuta". Sua frequência é de longo alcance: "estou aqui para ser os ouvidos de Deus"


Num dos capítulos do filme Rio, eu te amo, o personagem de Wagner Moura também desabafou, enquanto voava de asadelta ao redor do Corcovado. Ele descascava problemas como a violência na cidade abraçada pelo Redentor. A Arquidiocese do Rio achou desrespeitoso e a princípio vetou os direitos de uso da imagem da estátua. Acabou voltando atrás.

“Prefiro não comentar. Não pediram nada, nem dialogaram”, diz Omar, adepto da ideia de que “o homem tem dois ouvidos e uma boca por um motivo”. 

Com o jeitão carioca de quem cumprimentaria até o sisudo ex-papa Bento XVI com um “e aí, beleza?”, Omar é famoso entre famosos. Taís Araújo e Lázaro Ramos ligam no seu celular para arranjar o batizado do filho. Tem canal direto com o secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame. Já ajudou a preparar os atores Murilo Rosa e Eriberto Leão para papéis religiosos. No Instagram, só segue 11 pessoas, entre elas a socialite Narcisa Tamborindeguy e Alexandre Accioly, dono de restaurantes finos e da maior rede de academias da América Latina.

Joel, o taxista

Joel Alves, 60, olhou para o banco de trás do seu Logan amarelo. A passageira, “uma americana novinha, bonita, loiraça”, estava chorando. Quase lacrimejou junto. “Ah, eu me comovo fácil.” Ela balbuciava sobre o “boyfriend” chegado a uma “lie” (mentira). Talvez fosse “pie” (torta). Sem dominar o inglês, restou a ele evocar Toni Braxton e seu hit dos anos 1990: “Oh, darling, unbreak my heart”.

Fala que Joel te escuta. "Não sou superhiperintelectual nem nada, mas na maioria das vezes as pessoas me dão moral"


Há 15 anos na praça, o ex-técnico de informática roda das 20 horas às 6 horas, quando pesca as histórias mais loucas pelas ruas do Rio de Janeiro. Num dia são os amigos chilenos que ciscam atrás de “maricón” (como chamavam uma travesti) depois de cantarem de galo para as gatinhas da balada. No outro, a mãe orgulhosa do filho, um exator de Malhação que passa a corrida tirando onda pela colega gostosa que levou para o motel dois anos antes – por coincidência, o casal foi conduzido por Joel. Fora as cantadas “um pouco apimentadas” que recebe. Vira e mexe tem passageira “querendo engatar sua marcha”, mas Joel, com 40 anos de casado, não pisa “nesse acelerador”.

Se a vida é uma festa, Joel batizou seu possante de Taxi Party. Enfeitou o interior do carro com lasers coloridos e pendurou no para-brisa um globo prateado do tamanho de um punho. Casais ganham uma dose do Cointreau que guarda no porta-luvas, e todo mundo tem direito a uma foto com a GoPro trazida da Disney pela filha – o motorista posta os flagrantes no Facebook, junto com retratos “caseiros”, como um dele comendo Nhá Benta. 

É da noite que Joel gosta. “Durante o dia, o cara tá estressado, com pressa. À noite, não, chega alegre, bebendo, e fala mesmo.” 

Fala que Joel te escuta. “Não sou superhiperintelectual nem nada, mas na maioria das vezes as pessoas me dão moral.”

Vera, a ouvidora da Net

"Escuta aqui!” Vera Renno, 53 anos, está escutando há 13. Cerca de 30 mil ligações chegam todos os meses à ouvidoria geral da Net, que ela coordena com um olho no display de papelão do James Bond de Daniel Craig, colado à sua mesa de trabalho, e outro no iPhone 5S. A tela do smartphone é coberta pela foto dos seus “dois filhos”, o golden retriever Joca Renno, 7, e a teckel Cacau Renno, 6. 

Vera ama a vida de cão que leva. Isso inclui atender a todo tipo de cliente frustrado com a empresa, desde “o sujeito mamado que veio com um machado para destruir tudo” até “um outro que tentou se acorrentar com algemas de verdade a um dos nossos funcionários” – a Net ficou em 7º lugar no ranking de reclamações do Procon SP em 2013, com 4064 registros. 

Apelar à ouvidoria é como aquela prova das Olimpíadas do Faustão em que o sujeito tenta atravessar barreiras sem dar com a cara na porta. Uma fatura não chega nunca, e você liga uma, duas, três vezes para resolver o problema. Na 47ª tentativa, talvez seu humor esteja mais seco do que a Cantareira.

Certa vez, lembra, ela quase apanhou de “uma cliente alterada, com a bocarra destilando tanto xingamento, e tão de perto, que mais parecia o Alien”. Os colegas admiraram seu autocontrole. “Eles já teriam descido a porrada.” 

Vera, não. Da linha paz e amor, prepara chá para clientes enfurecidos o bastante para despencarem até a sede da Net, um daqueles prédios envidraçados cheios de baias e máquinas de café expresso, na zona sul de São Paulo. De vez em quando alguém descobre o endereço do lugar, e Vera diz que faz questão de receber os reclamões. 

“Consigo fazer do limão, limonada”, diz. Quando a “Alien” berrava, por exemplo, a ouvidora só conseguia se concentrar num detalhe. “O hálito da mulher era maravilhoso. Falava merda e saíam flores!”

 

Vera sabe que lida com "nervos à flor da pele", de gente disposta a "descarregar todas as frustrações da vida" num só ouvido. O dela ou o de um funcionário 

Vera sabe que lida com “nervos à flor da pele”, de gente disposta a “descarregar todas as frustrações da vida” num só ouvido. O dela ou o de um funcionário seu – Vera comanda diretamente cerca de 40 pessoas. Por isso, muita calma nessa hora: já demitiu quem aconselhou um cliente a “ouvir uma musiquinha” porque estava “supertenso”. 

“Tudo o que não tem é robô aqui”, diz, apontando com as unhas vermelhas para a sala com potinhos de biscoito amanteigado, letreiros de “feliz aniversário” para um colega e pôsteres de Homem-Aranha e Django livre. PS. Nenhum ouvidor foi machucado durante a realização desta reportagem.

Carmen, a manicure

Carmen Luiz, 60, queria gritar “ordem no tribunal!” e bater o martelinho na mesa. O sonho de ser juíza não se realizou, mas todo dia alguém pede seu julgamento. Há 44 anos ela cuida das mãos, dos pés e do coração da “classe bem A” paulistana. “A gente pega nas extremidades do corpo, fica olho a olho, uma posição de muita intimidade. Em meia hora você já sabe a vida toda da pessoa.” 

A família vendia manteiga, banana e galinha na feira, e Carmen sempre pintava as unhas das aves. Aí a mãe morreu, a casa pegou fogo, o pai morreu, e a primogênita teve que cuidar de seis irmãos. Virou manicure “por falta de opção”. 

Carmen aprendeu a gostar do ofício: modéstia à parte, é boa no que faz. Glorinha Kalil há 28 anos diz que ela é a melhor. O estilista Dener (1937-1978) se sentia tão em casa que, até morrer, falava das clientes que não saíam do seu muitíssimo bem tratado pé. “Todas queriam deitar com ele, até mulher de presidente.” 

Ela atende muito homem “pra lá de importante”. Um deles, que na frente das câmeras paga de machão, é outro atrás da porta onde se lê “depilação” (outra especialidade dela).

 

"A gente pega nas extremidades do corpo, fica olho a olho, uma posição de muita intimidade. Em meia hora você já sabe a vida toda da pessoa"

 

Hoje seu “confessionário” é no salão de Marco Antônio de Biaggi, “o hair stylist mais famoso do Brasil”, nos Jardins, bairro nobre de São Paulo. Seu lema: nada de meter o dedo onde não é chamada. “Manicure não pode abrir a boca de jeito nenhum. Discrição é o segredo.” 

Talvez por isso tanta gente se sinta confortável para sentar no banquinhodivã de Carmen e esmaltar a unha com misturas da Dior e da Marc Jacobs, a R$ 180, pés e mãos. “Essas mulheres trilhardárias são iguaizinhas à gente, só que com dinheiro e muita depressão.” 

Carmen se diz “uma vampira”: absorve um pouquinho da dor alheia. Uma cliente que atende desde que tinha 20 anos contou que estava “com um negocinho no seio”. “Fui pra cama com febre.” 

No fim do expediente, a manicure de unhas sem esmalte volta à sua vida “bem classe C”, num apartamento alugado na avenida São João, no centro da cidade. Culpa seu signo, Leão, pela “mulher cascuda” que é, pouco afeita a “precisar de ajuda”. Fora a filha de 40 anos, seus três gatos (Joel, Nicolau e Teresa Cristina) são quem mais a escutam. “Gosto mais de bicho do que de gente. Ver policial em cima de cavalo me faz chorar. A dó que tenho deles não tenho de uma pessoa.”

Patricia, a garota de programa

João: fala mais do que mete. Cachê: R$ 200. Rodrigo: baixinho, curte falar. Muito carente ele. Cachê: R$ 200. Cacá: falamos muito, brincamos e depois a Neide chegou. Cachê: R$ 300.” Patricia Kimberly, 30, desliza a unha dourada pelo caderno com uma gatinha de laço rosa desenhada nas extremidades. As experiências são registradas em poucas palavras, em letra de mão. 

Ela cruza as pernas envelopadas numa legging com estampa de marcas de batom rosa. “Tem aqueles que gozam rapidinho, em 10 minutos, e em seguida querem desabafar. Aqui é onde eles ficam mais à vontade. Sou namorada, mas não sou, não vou ligar pra ele no dia seguinte.”

Há 10 anos, Patricia olhou com desgosto para a carteira de trabalho: R$ 240 por mês para dar aulas de inglês. “What the fuck”, ela pensou. Seu sonho era estampar “capa de revista”. Começou virando garota de programa. Cobra R$ 300 a hora e atende os clientes no seu flat, no centro de São Paulo.

 

"Tem aqueles que gozam rapidinho, em 10 minutos, e em seguida querem desabafar. Aqui é onde eles ficam mais à vontade. Sou namorada, mas não sou, não vou ligar pra ele no dia seguinte"

 

“Ninguém quer ouvir sobre mim, é sempre sobre eles. Faço até cinco atendimentos por dia e fico por minha
conta à noite”, ela diz sem chororô. “Foi minha opção de vida.” Patricia acha que o blá-blá-blá subiu junto com o nível da clientela. Quanto mais fino, mais tagarela. “Antes o cara não tinha tanto pra gastar. Quando
gastava, queria sexo o tempo todo.” 

Agora, não. Ela abre as pernas; e eles, o coração. Muitos lamuriam sobre crises com a mulher. Outro dia, um descreveu o enterro da avó. E tem as confissões inconfessáveis, como o sujeito que fantasiava com a enteada de 16 anos após ver fotos dela no computador da casa. “Tinha fetiche e gostava do meu jeito de ninfeta. Eu fingia que estava dormindo pra ele fingir que estava me bolinando. Quando fica no mundo da fantasia é bom.”

Arquivado em: Trip / Trabalho / Comportamento