Porque?

por Luiz Alberto Mendes em

Porque?

Liberdade é estar no presente completamente, por pior que ele seja. Escapar do passado e não se projetar para o futuro. Na prisão aprendi a viver isso, necessariamente, e me acostumei porque funcionava. O meu passado só me condenava e me identificava de um modo que eu detestava. As pessoas que não me conheciam viam em mim o bandido que fui e não a pessoa que eu me esforçava para ser. Não havia futuro para mim. Estava condenado a mais de 100 anos de prisão. O meu futuro estava comprometido com a prisão.  O que me restava era só o buraco que eu mesmo cavara; um presente extremamente difícil de viver. Mas era naquele instante que se desenrolava minha existência. Era preciso que eu me concentrasse absolutamente nele.

Tornei a vida vital para mim. Masturbar era meu momento mágico de satisfação. Mesmo quando permitiram visita íntima (vivi 15 anos em abstinência sexual obrigatória), era na masturbação que eu concentrava a maior parte de meu prazer. Não me iludi. A prisão era o meu presente: as mulheres podiam vir, mas depois eu precisava me virar comigo mesmo. Acumulava imagens para alimentar a imaginação no momento do prazer solitário.

Fiquei quase um ano na cela-forte e ali, absolutamente sozinho, tive que inventar presente. Lutava para abstrair e, absolutamente concentrado, fazia ginástica até que o corpo não aguentasse mais. Amarrava a corda que puxava a descarga na privada e deixava encher o vaso. Tomava banho, molhando a cela toda. Esfregava e enxugava o chão minuciosamente. Nunca vi chão tão limpo.

Fui ao médico (escoltado)e consegui passar na revista com dois palitos de fósforo. Para encher a mente, comecei a medir a cela com eles. Todo dia media uma parte deslocando os palitos um atrás do outro, marcando e depois calculava em centímetros. Medi o chão e as paredes até o teto várias vezes, até ter certeza de quantos palitos tinha. Depois medi o teto concentrado em deslocar os palitos com os olhos. Ao fim comecei a calcular, em uma matemática que inventei, quantos centímetro quadrados tinha a cela. Depois metros quadrados. Fiquei muito contente quando conclui o processo. Mas esgotou e fiz vários palitos de dentes com os palitos.

Na cela comum, eu lia cerca de 3 a 4 livros de uma vez (ainda hoje faço isso) para não cansar a mente com um assunto só. Conseguia ler até o sino badalar (21:30 horas) e as luzes apagarem. Dai acendia a vela ou ligava a lanterna que eu improvisava.

Quando descobri que conseguia impregnar palavras escritas de meus sentimentos mais finos, me realizei. Eu me correspondia com mais de centena de pessoas de várias cidades, estados e até de outros países. Tive amigos em Miami, Portugal, África, França. Preso naquela cela eu me tornava alguém escrevendo cartas. Consegui conquistar, amar, ser amado e trouxe algumas mulheres para me visitarem na prisão. Elas eram criaturas maravilhosas que preenchiam meu presente de sentido. Não fosse essas mulheres, não sei se teria conseguido atravessar o caudal de dores que construí para mim.  

Foi assim e com milhares de outras estratégias que fui inventando que consegui viver 31 anos de 10 meses preso. Cada vez mais lúcido, devorando conhecimentos, desenvolvendo-me e humanizando-me,  sempre no tempo presente, até o fim. Na minha geração de presos, e éramos centenas (ou milhares) de jovens que começamos a cumprir penas juntos, não conheço nenhum que tenha chegado à minha idade, 63 anos, e que esteja na posição que me encontro agora. A maioria foi brutalmente morta no percurso. Alguns poucos saíram, voltaram várias vezes e estão presos ainda.

Porque eu? Por conta de minhas estratégias para viver no presente? Não sei, tenho cá minha dúvidas...

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Luiz Mendes

08/08/2015.      

 

 

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