Pobre e feliz
Dos escombros do East Village surgiam bares, galerias e grandes artistas
Eu vivia com quase nada quando me mudei para Nova York, em 1982. Dos escombros do East Village surgiam bares, galerias e grandes artistas, como Jean Michel Basquiat e Jeff Koons. Nunca fui tão pobre nem tão feliz
Viver com menos… Eu vivia – ou sobrevivia – com praticamente nada quando tranquei a faculdade e fui morar em Nova York, em 1982, aos 19 anos. Ganhava US$ 2 por hora trabalhando ilegalmente como sorveteiro. Muito duro, no desespero do inverno, não tive opção senão alugar um quarto num apartamento depredado no famigerado East Village, hoje um bairro abastado, que na época era um antro de heroinômanos, delinquentes e artistas afamados.
Antes de eu me mudar para lá, o quarto que aluguei tinha literalmente servido de galinheiro para um traficante porto-riquenho cujo hobby era criar galinhas – até o dia em que ele foi assassinado a facadas. Por anos, o fedor das galinhas continuou a impregnar o ar do meu quarto e as paredes do hall de entrada ainda tinham manchas de sangue.
O fétido prédio era uma espécie de Torre de Pisa junkie, tão inclinado que uma bola de basquete ao ser lançada para um lado da sala voltava sempre, obedecendo a lei da gravidade, para o lado oposto, visivelmente mais baixo. No East Village aconteciam desgraças – assassinatos, brigas de gangues, furtos e desovas de corpos – 24 horas por dia, sete dias por semana. O lugar era tão inóspito que uma vez, ao ver o Shnapsen, gato da minha roommate, cair pela janela do quinto andar, senti uma profunda certeza de que não tinha sido um acidente. Era suicídio.
ZUMBIS CANIBAIS
A duas quadras do meu apê ficava o Tompkins Square Park, uma praça imunda onde se misturavam diariamente velhos refugiados ucranianos, prostitutas porto-riquenhas, junkies e mendigos alcoólatras tão desfigurados que lembravam zumbis canibais dos filmes de Giorgio Romero. Nos sábados, a praça era também invadida por hordas de punks que vinham dos subúrbios de Nova Jersey ouvir música ao vivo. No afã de converter os punks, chegava sempre um trailer com um grupo barulhento de Hare Krishnas cantando mantras e distribuindo comida.
Mas, naquela época, o East Village fervilhava e era o lugar mais cool do mundo. No meio dos escombros e do lixo surgiam bares, galerias de arte, salas de show e cinemas, onde emergiram grandes nomes, como os artistas plásticos Jean Michel Basquiat e Jeff Koons, a Madonna e o cineasta Jim Jarmush. O East Village inventou os anos 80. Foi muito bom estar lá.
Nunca fui tão pobre. Nem tão feliz.
*Henrique Goldman, 51, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br |