Antes de acreditar na inevitabilidade do desastre, ainda replicam: “Como assim? Só forçamos um pouco a barra na velocidade e demos uma raladinha num iceberg”
POR CARLOS NADER*
Estou com um iceberg dentro da cabeça. E foi o aquecimento global que o trouxe até aqui. Não exatamente porque as camadas geladas do planeta estejam derretendo em níveis superiores até ao índice Lula (nunca antes vistos na história deste mundo…). Não é isso.
Estou me lembrando de um iceberg específico, talvez o mais famoso deles, aquele que se desprendeu da calota polar, numa época bem anterior ao desastre ambiental que vivemos hoje, para afundar o Titanic. Recongelado pela memória, ele me dá calafrios. Porque, se a
ponta lembra que vivemos uma mudança relativa de temperatura, o bojo, gigantesco, simboliza algo bem mais absoluto.
A morte.
O filme de James Cameron entendeu profundamente essa simbologia. Não por coincidência, teve também o maior público já visto na história deste país e deste planeta. A humanidade precisa de metáforas da morte. Referir-se diretamente a ela é nosso maior tabu. A morte é como o Deus de Moisés. Não dá para encarar de frente. E o Aquecimento Global é como o iceberg. Metáfora da morte. A maior delas, hoje. Os 600 cientistas
reunidos na Conferência do IPCC da ONU reforçam essa idéia. O alerta que eles dão e a recepção dos poderosos também me lembram uma cena-chave do Titanic. Num momento de calmaria depois do choque, o engenheiro que construiu o navio entra na cabine do capitão e avisa: “Vamos afundar”. Com um raciocínio científico incontestável, prova sua
tese às pessoas que estavam no comando do navio. Antes de acreditar na inevitabilidade do desastre, elas ainda tentam replicar: “Como assim? Só forçamos um pouco a barra na velocidade e demos uma raladinha num iceberg. Nada mais grave aconteceu. Estamos aqui, bem”.
LIBERE O BUDA INTERIOR
Os poderosos do navio responderam movidos por um impulso essencialmente
humano: o de negar a morte. Tanto quando primeiro mandaram aquecer os motores e geraram uma velocidade imprudente quanto depois do acidente, quando refutaram a conclusão científica do engenheiro.
Também assim agem os poderosos da nossa nave-mãe, quando o assunto
é Aquecimento Global. Primeiro levam o planeta a uma velocidade imprudente, depois negam as conseqüências catastróficas dessa velocidade.
Al Gore pode até ganhar o prêmio Nobel, Bush pode jurar que mudou de opinião, mas o fato é que os motores globais de um modo de produção inconseqüente e poluidor ainda continuam acelerando. A negação, na prática, ainda é total. Não há dúvida disso. A dúvida que conta é saber se já batemos ou não no iceberg irreversível. E, caso ainda
não tenhamos batido, se ainda há tempo para mudar de rota.
Nessa nau de insensatos, os detentores do poder são guiados pelo interesse econômico e a maioria dos passageiros viaja na segunda classe da impotência. Ou na terceira da cumplicidade. Temendo pela própria vida. Pela vida dos seus descendentes. Paralisada pelo medo e pela culpa.
Se quisermos mudar alguma coisa, é preciso entender a mecânica dessa paralisia. Ela está intimamente ligada à nossa relação usual com a morte.
Independente do Aquecimento Global, a maneira com a qual costumamos lidar com a morte é na verdade muito simples. Lidamos não lidando.
Negamos até o último segundo. É um método compreensível – e até justificável. Como aceitar uma verdade tão esmagadora? Não aceitando.
É assim. Assim será. Não dá para exigir que todo mundo libere o Buda interior nesta encarnação. Negar a morte está em nossa essência.
A boa notícia é que o Aquecimento Global pode ser metáfora da morte, mas não é a morte em si. O Aquecimento é um fato relativo com o qual podemos lidar. A morte é absoluta. Confundir as duas coisas é o erro primário que está nos deixando sem ação. Estamos siderados por um fantasma. E caindo assim numa armadilha suicida. Quem nega a iminência do desastre afirma o desastre. Quem fica passivo contribui ativamente
para o pior. Assim, o que resta é simplesmente agir. Não há solução mágica. Nunca foi tão verdadeiro aquele clichê do “pensar global e agir local”. Agir. Boicotar empresas poluidoras. Incentivar as companhias verdes. Exigir dos políticos. Substituir fontes de energia. Economizar água.
Mudar de carro. Andar mais a pé. Reciclar. Plantar uma árvore. Agir. Só.
Não podemos deixar que um historiador, num futuro sombrio, faça a pergunta óbvia, cuja resposta lhe parecerá inacreditável: “Se os 600 maiores especialistas avisaram que o mundo estava caminhando na direção de sua maior catástrofe, como é que ninguém fez nada?”.
*Carlos Nader, 43, é um homem de mídia. Seu e-mail é: nader@trip.com.br
