Tenho um amigo que me falou que há qualquer coisa comigo que ele não sabe definir. Que ele anda para todos os lados e todos os dias, e não vê nada diferente, tudo é sempre o mesmo, nada o surpreende. E basta eu sair na rua pra voltar com mil histórias. Não é bem assim, ou tem alguma coisa que é assim mesmo, mas não todas. Por exemplo: não tenho carro ou moto, nem sei dirigir. Então só ando de ônibus. No ônibus não posso ler que sinto tontura, dor de cabeça e enjoou de estômago. Não coloco aparelho de som (todo mundo esta com os fios saindo das orelhas) nos ouvidos porque já escuto pouco e se ficar nessa, rapidamente fico surdo de vez. Então, no ônibus, nas ruas, nos recintos, em todo canto que vou estou sempre muito atento, curioso e com os sentidos acesos, pouca coisa me escapa.
Pouco saio de casa. Quando saio, tenho sempre em mente que é também para apreciar tudo que vejo de bom ou bonito, feio ou degradante. Fico como uma esponja a absorver longamente tudo ao meu redor e ao longe. Tem a coisa profissional também, do escritor: estou sempre observando, sentindo, experimentando e imaginando como ficaria se fosse escrito.
Foi assim que outro dia fiquei até um pouco mais tarde na cidade. Havia feito um monte de coisas e participara de uma reunião que terminou mais tarde que o previsto. Então vim pegar o metrô para descer perto do ponto de ônibus que iria para casa. Estava perto de sete horas da tarde e um monte de pessoas estava arrumando papelões, pedaços de cobertores, colchões velhos, barracas, para dormir ali, na porta dos edifícios, ao relento. O vento gelado estava quase me levando, imaginei-me ali deitado naquele chão duro, cheio de friagem, mal coberto, sujo, talvez com fome, vontade de ir ao banheiro (como será que fazem?)... Depois pensei no cobertor, lençóis, travesseiros, banheiro cheiroso, água quente, teto e o meu cão que, nas madrugadas frias, sobe na cama e se enrosca em mim parecendo um forno de tão quentinho...
Quando passei pelo antigo Mappin, que hoje é Casas Bahia, a contradição me fez voltar e observar mais de perto. Em volta, na calçada, dezenas de pessoas esticadas com os pés para a rua, alguns já dormindo, outros apenas deitados e ainda outros preparando-se para deitar. Em volta do prédio da loja parecia um grande dormitório. Na entrada da loja estava sendo exibida, a poucos centímetros do pessoal deitado, uma enorme cama box equipada e coberta por um lindíssimo endredon colorido. Pessoas dormindo no chão, aos pés de uma cama luxuosa que parecia já vir devidamente aquecida. O contraste era tamanho que algo ali me agredia, estava me angustiando só de olhar. Milhares de pessoas para lá e para cá e ninguém reparavam na gravidade da cena. A indiferença parecia geral; os transeuntes passavam ao largo, evitavam a proximidade com o povo ali deitado. Talvez julgassem que eles fossem pedir, agredir, querer roubá-los, ou fosse contagioso, algo assim. Minha preocupação era se as pessoas pensam que as coisas estão para serem assim mesmo e por conta disso nem ligam mais ao verem seres humanos naquela condição tão desumana.
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