Pérola oculta
Goldman resgata obra-prima literária russa dos anos 50 ainda inédita no Brasil
Em 1959, o dissidente soviético Vasily Grossman submeteu um manuscrito à KGB. O chefe da censura lhe disse que seu livro era uma ameaça e não seria publicado nem em 200 anos
O romance Vida e Destino, do dissidente soviético Vasily Grossman (1905-1964) é uma das maiores obras-primas do século 20. Grossman usa o cerco de Stalingrado durante a Segunda Guerra Mundial – talvez o momento histórico mais trágico e sanguinário, no qual os homens tiveram seus narizes esfregados na sua própria e mais fétida bestialidade – para tecer uma profunda e monumental ode de amor pela humanidade, pela vida e pela liberdade.
Em 1959, ao terminar de escrever o romance, Grossman submeteu o manuscrito aos censores da KGB. No dia seguinte seu apartamento foi invadido por agentes e sua máquina de escrever foi confiscada. O chefe da censura lhe disse que seu livro era uma ameaça ao comunismo pior do que as bombas atômicas americanas e que um livro assim subversivo não seria publicado nem em 200 anos. Foi só graças ao físico dissidente Andrey Sakharov, que contrabandeou para o ocidente um microfilme da obra, que o livro foi finalmente publicado na Suíça, em 1980. É incompreensível como até agora não tenha sido publicado do Brasil.
Um trecho da obra
Como não sou crítico literário e não sou capaz de – com meus comentários – fazer jus à grandeza dessa obra, me limito aqui a traduzir (do inglês) uma de suas mais belas passagens, no afã de divulgar no Brasil esse livro fundamental e na esperança de que algum editor se decida a publicar essa obra definitiva.
“Quando uma pessoa morre, ela sai do reino da liberdade e entra no reino da escravidão. Vida é a liberdade e a morte é a negação gradual da liberdade. A consciência primeiro enfraquece e depois desaparece. Os processos da vida – respiração, metabolismo, circulação – continuam por algum tempo, mas foi feito um movimento irrevocável em direção à escravidão; a consciência e a chama da liberdade se extinguiram.
As estrelas desapareceram do céu noturno. A Via Láctea desvaneceu-se; o sol apagou; Vênus, Marte e Júpiter se extinguiram; milhões de folhas morreram; o vento e os oceanos se dissiparam; as flores perderam sua cores e seus perfumes; o pão sumiu; a água sumiu; até mesmo o próprio ar, o ar às vezes fresco e às vezes abafado sumiu. O universo dentro da pessoa parou de existir. Esse universo é surpreendentemente parecido com o universo que existe fora das pessoas. É surpreendentemente parecido com os universos que continuam a ser refletidos dentro dos crânios de milhões de outras pessoas viventes. Mas ainda mais surpreendente é o fato de que esse universo tinha algo em si que diferenciava o som de seu oceano, o cheiro de suas flores, o farfalhar de suas folhas, os tons de seu granito e a tristeza de seus campos no outono tanto daqueles (sons de oceanos, cheiro de flores, farfalhar de folhas, tons de granito e tristeza de campos de outono) que existem ou existiram dentro das pessoas, como daqueles (sons de oceanos, cheiro de flores, farfalhar de folhas, tons de granito e tristeza de campos de outono) do universo que existe externamente fora das pessoas. O que constitui a liberdade, a alma de uma vida individual, é o seu caráter único. O reflexo do universo na consciência de alguém é a base de seu poder, mas a vida só se transforma em felicidade, só é dotada de liberdade e sentido, quando alguém existe como um mundo inteiro que nunca foi repetido em toda a eternidade. Só então se pode experimentar o prazer da liberdade e da bondade, encontrando nos outros aquilo que já foi encontrado em si mesmo.”
*HENRIQUE GOLDMAN, 48, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br