Perigo: escritor na pista

Bernardo Carvalho trocou São Paulo por Berlim com o sonho de fazer tudo de bicicleta

por Ricardo Calil em

 

 

 

Um dos principais romancistas do Brasil, Bernardo Carvalho trocou são paulo por berlim com o sonho de viver em uma cidade onde se faz tudo de bicicleta. Depois de comprar uma bike roubada e escapar de um acidente grave, ele conta como conseguiu concretizar seu desejo

Bernardo Carvalho saiu de São Paulo atrás da miragem de uma bicicleta em Berlim. É o que ele conta no diário que criou para o blog do Instituto Moreira Salles. Autor de dez livros, ganhador do Jabuti e do APCA de melhor romance por Mongólia e considerado um dos principais autores brasileiros em atividade, Bernardo ganhou uma bolsa de um ano da Daad, instituição que promove um intercâmbio acadêmico entre Brasil e Alemanha. E encontrou no convite a oportunidade de realizar a velha fantasia de viver em uma cidade onde se faz tudo de bicicleta – algo que nunca conseguiu concretizar na capital paulista.

 

“Toda bicicleta que eu compro em São Paulo acaba pendurada num gancho no teto da área de serviço, com os pneus secos e murchos. O sonho de andar de bicicleta em São Paulo termina assim que o primeiro ônibus ou o primeiro táxi se arremessa contra você, em geral buzinando - o que pode ser percebido como simples afirmação da truculência ou, se você tiver vocação para santo, como forma invertida de piedade, último aviso antes do massacre”, ele escreve.

Mas o sonho da bicicleta berlinense quase virou pesadelo. Primeiro, Bernardo descobriu que havia comprado uma bike roubada e se viu assaltado pela paranoia de ser preso. A culpa, porém, durou pouco. “Se não atropelar nenhuma velhinha até o fim da minha estada em Berlim, é improvável que a polícia venha a me pedir o contrato de propriedade da bicicleta.”

Depois houve o primeiro acidente. Bernardo tentou subir o meio-fio em velocidade e se espatifou com a cabeça no chão. Achou que estava com um coágulo no cérebro, foi a um médico e descobriu que não houve consequência mais grave – fora o fato de se obrigar a comprar um capacete de ciclista, “um erro notável na história do design”.

Na entrevista para a Trip a seguir, o escritor carioca de 50 anos diz que andar de bicicleta oferece uma posição privilegiada para observar as diferenças culturais, porque permite uma experiência mais intensa da vida na cidade, em especial da sempre tensa relação entre motoristas, ciclistas e pedestres. “Pedalar em Berlim não é o paraíso da segurança que eu havia imaginado, mas não é uma tentativa de suicídio como em São Paulo”, afirma.

Vou de bike
A bicicleta está na minha vida faz tempo. Aonde eu vou, se eu posso sair de bicicleta, é uma das primeiras coisas que eu faço. Desde que instalaram as Velibs em Paris, nunca mais andei de metrô. Quando passei um mês em Berkeley (Califórnia), como escritor convidado, só andava de bicicleta. Quando fui a Praga, tirei um dia para ir de bike a uma castelo de caça, no campo.

 

Ameaça paulistana
Uma das maiores frustrações em São Paulo é não poder sair de bike. Tentei muito, mas acabei desistindo, de medo. Passei por situações de risco o tempo inteiro. Basta você pôr a roda da bicicleta na rua para se sentir ameaçado. Os táxis, os ônibus e os carros comerciais se jogam sobre você. É um negócio incrível, parece piada, se não fosse aterrorizante. Há o problema físico, geográfico. Não é uma cidade plana. Fora isso, há a óbvia falta de educação no trânsito. Tenho amigos que são adoráveis, mas passaram a vida em São Paulo e acham que o pedestre tem que ceder a vez ao carro.”

Contra o prazer
O prazer é uma das coisas que mais incomoda os outros. As pessoas não gostam de ver os outros sentindo prazer. É isso o que acontece com as bicicletas. É um modo de vida diferente daquele do sujeito que tem de trabalhar de carro e está preso no trânsito. Pode parecer um clichê, mas é verdadeiro também. A liberdade dos outros incomoda quando você está preso.

Rancor e impotência
Berlim é aparentemente muito calma. Mas já estou mudando de opinião quanto à segurança dos ciclistas, por exemplo. Quando cheguei, em comparação com São Paulo, achei que estava no paraíso da segurança. E não é bem assim. Acontecem coisas horríveis, acidentes graves. Menos que em São Paulo, é claro. Mas comecei a perceber que há motoristas, e sobretudo taxistas (como, aliás, em São Paulo), que desafiam o ciclista, assim como alguns ciclistas também desafiam os motoristas. Há um rancor de determinado tipo de motoristas contra a bicicleta. Em geral, acho que são motoristas que trabalham no trânsito. Para eles, a bicicleta simboliza um negócio insuportável. E sempre tem o cara com a Ferrari, que atravessa a cidade com o pé no acelerador, só pra fazer um puta barulho e se mostrar. Tem a ver com uma espécie de impotência, eu acho.”

A bicicleta como usa
Para mim, o lugar ideal para escrever é fora do mundo, fora do mundo onde eu me reconheço, e isso é ideal numa cidade estrangeira, enquanto ela for estrangeira, enquanto você não se reconhecer nela. A bicicleta só agrega felicidade a esse estado fora do lugar. Quando você empaca em certa parte do romance, e não sabe como seguir adiante, não tem nada melhor do que sair de casa, ir pra rua, tanto faz se é a pé ou de bicicleta, mas é importante sair. E, pra mim, a bicicleta facilita, posso ir mais longe e mais rápido a lugares que eu não conhecia, por caminhos que eu não conhecia.”

Capacete ridículo
Pouca gente usa capacete em Berlim. Isso é surpreendente. Há uma resistência entre os locais. E isso só torna o capacete ainda mais ridículo. Quando eu cheguei, fiquei influenciado pelo hábito local, porque já achava aquilo incômodo e feio. Até levar um puta tombo e cair de cabeça na calçada, por minha culpa. E realmente fiquei assustado. Achei que estava com um coágulo no cérebro (sou totalmente hipocondríaco, é claro). Mas passei uns quatro dias tonto, com a cabeça doendo e vazia. E de repente me dei conta de que podia ter morrido. E a questão estética do capacete passou a ser totalmente secundária.

Sensação de anomalia
O que me anima mais com as bikes é uma sensação de anomalia e liberdade dentro dos grandes centros. Em princípio, as grandes cidades foram feitas para carros e essa incongruência, esse desafio de passar a utilizar a cidade para as bicicletas, é incrivelmente libertário. Por exemplo, moro ao lado de uma floresta. No último fim de semana, fui de bicicleta tomar banho de lago. É uma maravilha. Mas não é o que mais me excita quando eu saio de bike. O que eu gosto mesmo é de atravessar uma grande cidade de ponta a ponta, pelo asfalto, descobrindo cantos, ruas etc. Tem um negócio meio infantil nisso, um redimensionamento do mundo, pela escala da bicicleta. Em São Paulo, é impossível imaginar essa liberdade, porque você pode ser atropelado a qualquer instante.

Retorno a São Paulo
Quando voltar a São Paulo no ano que vem, acho que vou levar a bicicleta que comprei aqui. Talvez seja um novo começo. Talvez. Talvez seja um suicídio também.

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