Paraíso perdido
Alex Miranda aportou em 2001 na Indonésia. Agora em agosto, esteve no arquipélago para presenciar uma mudança radical na cultura local
Com um certo olhar romântico, antes de ser um paraíso do surf, a Indonésia poderia facilmente ser descrita como um paraíso da diversidade cultural. É difícil imaginar um exemplo mais rico: um país formado por mais de 17.500 ilhas, quarta maior população do mundo, englobando mais de 300 grupos étnicos diferentes, centenas de dialetos e, apesar de ser a maior nação muçulmana hoje, não é fundamentalista. Budismo, cristianismo católico e protestante, confucionismo e hinduísmo são as religiões reconhecidas oficialmente pelo Estado e praticadas sem perseguição.
Apesar das origens taiwanesas e malaias dos indonésios, essa diversidade foi forjada ao longo de séculos de intercâmbio comercial com os chineses, os indianos, os árabes e os europeus, principalmente portugueses, ingleses e holandeses – estes últimos a mantiveram colônia por 350 anos até a Segunda Guerra Mundial.
Nesse caldeirão multiétnico e cultural, Bali se destaca como um dos lugares mais abertos do país. A história oficial fala de sua tradição de tolerância, ligada ao budismo e ao hinduísmo, mas nesse ponto vale especular se as ondas fantásticas que quebram por lá não teriam uma certa influência nessa abertura local.
Afinal, sem contar os relatos antropológicos, o surf internacional aportou por lá pela primeira vez no começo do século passado, levado pelo californiano Bob Koke, que foi para a ilha partindo do Havaí e abriu o Bali Hotel na praia de Kuta, nos anos 30.
“EM 2001, ALGO ME DIZIA QUE AQUELE LUGAR [BALI] IRIA SE TORNAR A SODOMA E GOMORRA DOS NOSSOS TEMPOS”
Se as ondas foram responsáveis por criar a mítica da Indonésia e de Bali como paraíso na Terra, sua exploração tem conseguido reverter a polaridade, e o que antes era sonho agora se aproxima do pesadelo turístico. Apaixonado por essa mítica de Bali desde a adolescência, o diretor de filmes publicitários Alex Miranda, 38, um dos poucos que conseguem conciliar uma carreira profissional bem-sucedida fora do esporte com surf de alto nível, esteve em Bali três vezes, em 2001, 2002 e voltou agora há pouco, em agosto de 2008, e atesta: “Fiquei chocado com o quanto a ilha cresceu. Bali virou a Broadway do turismo, com altas grifes por toda parte, hotéis faraônicos, lotação máxima”.
Para os pioneiros que chegaram para surfar em Bali ainda no embalo hippie dos anos 60, talvez a observação de Alex de que o paraíso se perdeu agora em 2008 seja um tanto tardia. É possível imaginar que tenha começado a ruir culturalmente já nos anos 70, com o crescimento do turismo na ilha e a construção dos primeiros grandes hotéis. A própria criação dessa estrutura já denuncia que há praticamente uma nova forma de colonização em curso por lá, desta vez não por Estados, mas pela transnacionalidade do turismo de massa.
Mas essa não é uma questão para ser vista de forma ideológica. Se a expansão mata aquele prazer de estar num pico virgem, por outro lado, sem ela não teríamos o mito do surf na Indonésia, que fez tantos outros surfistas como Alex idealizarem viagens para lá por anos a fio. “Desde a primeira vez que tive notícia da Indonésia ficava tentando imaginar mesmo de longe como seria aquele lugar tão mágico, de ondas fantásticas, cultura mística e tudo bem barato... Como antigamente as novidades demoravam para chegar, tinha-se pouca informação sobre o arquipélago. Meu antigamente é por volta de 1987. Eu tinha 17 anos e assistia aos amigos mais velhos voltar da Indo com novos sons, cangas e algumas fotos, poucas e boas, que saíam nas revistas da época. Lembro-me de trips épicas e relatos alucinantes do Zecão, que rachou a cabeça em Uluwatu Corner, tomando dezenas de pontos e quase morrendo. Outra que me lembro foi uma das idas do Jorge Pacelli, que voltou com as costas todas rasgadas e botaram o nome de Scar Reef no pico. O Davi Cebola foi pra Nias antes dos anos 90 e nunca me esqueço das paredes verdes e dos imensos tubos que vi em suas fotos. Aquilo me despertou para a Indonésia.”
MITO E REALIDADE
Foram 12 anos desde os primeiros relatos dos amigos sobre as ondas em Bali até Alex ir para lá pela primeira vez em 2001, numa típica surf trip. Uma semana em Bali, 12 dias em Mentawaii em barco top, com fotógrafo a bordo, e uma semana de relax em Bali na volta. “Depois de uma semana em Uluwatu, quando o swell pegou, parti para Mentawaii… Centenas de ilhas semivirgens, tubos alucinantes em macarronis, telescopes, lances left, lances right… A evolução, de alguma forma, já estava transformando aquele lugar. Muitos barcos por toda parte, balsas com toneladas de madeira saindo do interior das ilhas virgens e muita queimada. Toda aquela velocidade me assustava e olha que ainda não tinha nenhum surf camp nas redondezas.”
Apenas um ano entre uma viagem e outra, e os sinais de que as coisas estavam saindo do controle já apareciam. “Foi um choque ver, quando cheguei lá pela segunda vez, o quanto Bali tinha crescido. O número de brasileiros era uma coisa doida. Muita loucura na noite, algumas pessoas ofereciam drogas nas calçadas e a balada já tinha uma vibração mais pesada. Muitos da geração mais velha começavam a procurar lugares para ficar perto de Uluwatu, mais perto das ondas e longe do agito desordenado.”
Dois meses depois que Alex deixou a ilha, em outubro de 2002 houve o atentado ao Sari Club, realizado por fundamentalistas islâmicos ligados à Al Qaeda. Duzentos mortos, cerca de 300 feridos de mais de 20 nacionalidades diferentes davam a dimensão de que Bali já era internacional. “Nas primeiras vezes que fui, o Sari era o nightclub. Não se pagava nada para entrar, telões mostravam videoclipes e a sonzera dominava alto o ambiente aberto. Isso era ótimo porque não ficava aquela fumaça que impregna os clubes fechados… E as mulheres eram de todos os lugares, Eslovênia, Praga, Moscou, França, Espanha. Loucura total. Algo me dizia que aquele lugar iria se tornar a Sodoma e Gomorra dos novos tempos.”
“MUITOS DA GERAÇÃO MAIS VELHA COMEÇAVAM A PROCURAR LOCAIS PARA FICAR MAIS PERTO DAS ONDAS E LONGE DO AGITO”
O efeito do bombardeio ao Sari Club foi sentido em Bali na temporada seguinte. O que era visto como uma ilha de exceção, de tolerância, agora era alvo terrorista. Segundo dados oficiais do governo da Indonésia, em 2002, 5.033.400 turistas visitaram o país, esse número caiu para 4.467.021, em 2003, um ano depois do atentado. Isso fez com que o governo passasse a investir mais em campanhas para atrair turistas. Deu certo, os dados mais recentes, de 2007, mostram que 5.505.759 visitaram o país. Mas as campanhas mudaram também quem visita Bali. “Nesta última visita Bali mudou mais ainda. O lado de Padang e Uluwatu cresceu muito, e os hotéis estão cortando os clifs para fazer megaconstruções. Quando estamos surfando, vemos do outside os cortes nos clifs e muitos deles desmoronando, o fim do mundo”, conta Alex. Com menos surfistas e mais turistas, a noite de Bali também sofreu uma transformação radical.
TUDO DESORDENADO E PERDIDO
“A noite continua fervendo. Aquilo mais parecia o inferno, tudo desordenado e perdido. Gente comendo gente a todo minuto, gays, lésbicas, marombados, européias muito loucas de bar em bar, muita droga sendo oferecida na calçada. Os nightclubs continuam abertos, mas agora são centenas. Casas de massagem a cada esquina, camelódromos, milhares de brasileiros e o mais curioso: não são surfistas, surfistas, são baladeiros.”
Essa nova temperatura da cidade também causou um outro fenômeno, o crescimento da prostituição. “É impressionante o número de prostitutas oferecendo serviços. Perguntei a um taxista por que havia crescido tanto o número de prostitutas e lady boys nas ruas. Ele me disse que as mulheres na Indonésia têm de casar virgens. Ao não resistir às tentações da noite e aos belos turistas, acabam transando com eles e são banidas da sociedade. Sem outra opção, começam a se prostituir. Que mudança cultural power!”
“BALI VIROU A BROADWAY DO TURISMO. É IMPRESSIONANTE O NÚMERO DE PROSTITUTAS. AQUILO MAIS PARECIA O INFERNO”