Os mortos têm sexo?
No enterro do travesti Fernanda, o padre italiano chamou-a de “fratello Fernando”
Em 1999 morei quase o ano inteiro na Pensione Napoli, uma fétida espelunca no centro de Milão, onde todos os outros hóspedes faziam parte de um grupo de travestis brasileiros que se prostituía em um posto de gasolina abandonado no subúrbio de Brescia. Eu me envolvi com essa turma porque estava pesquisando a vida dos travestis brasileiros para o longa-metragem Princesa, que dirigi em 2000.
A “princesa” era a Fernanda, uma morena paraibana que nasceu enjaulada no corpo de um homem. Ela tinha lábios de Iracema, bunda de tanajura e os olhos negros mais inocentes do mundo. Ao contrário de todos os outros travestis, Fernanda era muito tímida e bem-educada. A coisa que mais a alegrava nessa vida era ser tratada como mulher por um cavalheiro. Foi abrindo portas para ela, literalmente, e emprestando meu casaco num dia de frio que eu conquistei a sua amizade.
Nas noites o posto de gasolina era invadido pela travecada e virava mercado de carne. Os clientes italianos faziam fila nos carros, atrapalhando o trânsito. Um travesti velho e aposentado chegava num Fiat estrupiado vendendo estrogonofe de frango em marmitex. Os travecos brasileiros faziam tanto sucesso que havia entre eles até uma puta italiana que engrossava a voz e imitava o sotaque brasileiro para atrair mais clientes. Era uma mulher fazendo de conta ser um homem que por sua vez fazia de conta ser mulher. Naquele carnaval, Fernanda se destacava pelo silêncio e por sua quase ausência. Pudica, ela sentia vergonha de se prostituir e ficava isolada num canto esperando passivamente que alguém a levasse embora para um boquete. Não queria fazer parte do único mundo que a aceitava. De dia era a mesma coisa: ficava no quarto, sempre sozinha.
Depois de uma batida da polícia em que eu fui parar na delegacia com a turma, Fernanda me disse que ia tentar a sorte na província de Verona, a cidade de Romeu e Julieta, onde segundo ela havia uma boa clientela e a vida era mais tranquila.
FRIGO MORTIS LIMITADA
Não a via há muitos meses quando recebi o telefonema de um delegado de Verona. Fernanda tinha se enforcado no estacionamento de um supermercado, e ele me intimava a comparecer ao necrotério para reconhecer o corpo. Era a primeira vez que via um cadáver. Ao chegar lá, um funcionário com ar de vampiro abriu uma geladeira de aço inoxidável e me mostrou o corpo de Fernanda. Era sem dúvida ela. Só faltava sua cor. E seus braços estavam cortados, pois ela se automutilava com uma lâmina. Na porta da geladeira, reparei num logotipo de metal com a marca do aparelho e nunca esqueci. A marca era Frigo Mortis Limitada.
No dia seguinte, comparecemos ao enterro só eu, meu assistente Duccio e um casal, os donos do bar onde Fernanda almoçava todos os dias. Entramos numa esquálida capela onde estava um caixão de madeira barata, doado pela prefeitura. O sacerdote, sem entender a situação, começou a fazer um sermão estúpido se referindo à morta, a Fernanda, como um homem, chamando-a de “fratello Fernando”. Triste ironia: as últimas palavras foram dirigidas a uma Fernanda homem, aquele que já nascera morto dentro dela.