Os donos da rua
JR Duran: "O flanelinha é a perfeita tradução do jeitinho brasileiro na forma da extorsão"
O flanelinha é a perfeita tradução do jeitinho brasileiro na forma da extorsão e da ameaça velada. Sua presença significa que aquele espaço público deixou de ser de todos e pertence só a ele
Se você tem um carro, já conheceu pelo menos um flanelinha. Se não tem, já contemplou um deles em ação. Não tem um show, um jogo de futebol ou o que for sem a presença deles; os verdadeiros donos de qualquer pedaço de rua e suas vagas para estacionar.
O termo “flanelinha” vem de uma época em que no Rio de Janeiro os guardadores de carros – que tomavam conta deles de verdade – usavam um pedaço de flanela para identificar, de longe, o lugar livre para deixar o veículo. Era com esse pedaço de pano, em troca da gorjeta recebida, que eles aproveitavam para lustrar o carro guardado. Com o passar dos anos a flanela desapareceu, junto com a intenção do pretenso guardador de ficar até a volta do dono do carro. Hoje em dia a presença de um indivíduo em uma vaga de estacionamento significa que aquele pedaço de rua deixou de ser de todos e pertence exclusivamente a ele.
O flanelinha é a contrapartida da Zona Azul, em termos de economia submersa, a chantagem na sua maneira mais ínfima e quase desapercebida em uma área física, e jurídica, que a prefeitura e a polícia militar não conseguem controlar¹. Um flanelinha é a perfeita representação da zona que transita entre a luz e a escuridão, por onde se move o jeitinho brasileiro na forma da extorsão, da ameaça velada, na forma mínima do achaque. Para se caracterizar como tal, a vítima tem de ir até uma delegacia e prestar queixa com a ajuda de uma testemunha. Agora me diga: se você está indo se divertir em um show (para o The Wall, no Morumbi, em São Paulo, o valor requerido era R$ 150), um jogo, vai deixar tudo para trás e ficar esperando sentado num banquinho que alguém ouça sua reclamação?
Taxa extra
Neste momento, em São Paulo, existe um projeto na Câmara dos Vereadores que prevê a criação de estacionamentos de Zona Azul onde os flanelinhas atuam. Seguindo o mesmo raciocínio, imagino que também se poderiam cancelar os shows de rock, os jogos de futebol e qualquer tipo de aglomeração pública e, assim, os flanelinhas não teriam nenhum motivo para sair de casa.
Não tenho nenhum problema em dar gorjeta, na volta, para quem der uma olhada no carro. Tenho dificuldades, sim, em ser obrigado a pagar para estacionar – é isso que acaba acontecendo – em um lugar público².
Por isso não se engane: seu carro, além de vir com IPVA, taxa de Controlar e limitados pelo rodízio, também vem acompanhado de um flanelinha³.
*J. R. Duran, 55, é fotógrafo e escritor (www.twitter.com/jotaerreduran)