Onde fica a saída?
Escolha uma das mais de cem portas, entre e vá navegando.
A umas duas quadras de onde moro, existe um café. Eles servem doces, alguns salgados e, claro (e também escuro), café. As comidas e bebidas são ok, mas não sobra nenhuma dúvida, nem ao mais glutão dos freqüentadores do lugar: o melhor do estabelecimento são suas mesinhas acomodadas numa espécie de mini deck que avança pela calçada. Dali vê-se o mundo passar.
Melhor que isso, ouve-se. Ouvir pedacinhos de conversas de quem passa pode ser uma modalidade de exercício muito interessante nas olimpíadas da análise de comportamento, esse exótico esporte do qual vivemos. O alongamento de orelhas em busca dos fragmentos móveis de vida, nesse caso, é ajudado pelo fato de que bem ao lado dali há uma farmácia.
É possível que existam teorias ou mesmo pesquisas provando que quem vai à farmácia tende a estar mais pensativo. Talvez o fato de que nelas, de um jeito ou de outro, se tem um contato quase forçado com nossa própria fragilidade, transitoriedade e finitude, produza mesmo curiosos efeitos de introspecção sobre nossos estados de espírito... Mas o que esta longa introdução pretende é chegar a um momento muito peculiar ocorrido semana passada naquela calçada.
Um sujeito trajando bermudas dessas com bolsos laterais largos, uma camisa esporte qualquer e um par de sapatos irrelevante vinha com um saco da tal farmácia na mão, acompanhado por alguém que parecia ser um velho amigo, daqueles com quem a comunicação oral já foi tornada quase dispensável pelo tempo. Mesmo assim ele dizia:
“Estranho, velho... muito estranho. Muito estranho. Muito estranho... Tá estranho...”. A cada repetição da palavra, a estranheza ia ganhando peso e concretude, tornando-se mais indigesta, ácida e cabeluda. A que diabo de estranheza estaria aquele passante de short cargo se referindo afinal?
Aquilo magnetizou minha atenção de tal maneira que me fez levantar da mesa, deixar sobre ela óculos, xícara e outros pertences para tentar ir atrás por alguns metros e desvendar algo mais daquela mensagem cifrada que, apesar do curto vocabulário e do excesso de repetições, parecia conter uma dose incomum de sabedoria, especialmente se comparada à cota média dos comentários colhidos ao pé do ouvido naquele movimentado passeio público.
“É violência, desigualdade demais, medo, economia zoada, gente pobre e rica se acabando no crack, o povo passando mais tempo numa caixa de lata com rodas tentando se mexer na cidade do que vivendo, uma pressão desgraçada e uma competição animal até para comprar um pão com manteiga na esquina, corrupção nojenta até nas esferas mais insignificantes do poder, empresas estatais gigantes à deriva, povo na rua reclamando e quebrando coisas a toda hora, gente amarrando ladrão no poste e descendo o sarrafo. Estranho... tá tudo muito estranho...
Tô pensando em ir embora disso aqui, véio...” foi concluindo nosso personagem enquanto amassava entre os dedos a boca do saquinho de papel com logotipos de laboratórios que trazia nas mãos.
Não se tratava evidentemente de um “marajá das Alagoas” nem de nenhum bilionário do agronegócio prestes a contratar Roberto Carlos para sua próxima campanha. O sujeito estava mais para representante da tão pesquisada e analisada classe média, seja lá o que isso queira dizer hoje em dia...
É muito provável que o país não venha a se transformar numa Governador Valadares continental, mas é fato que esse tipo de conversa representada pelos fragmentos colhidos e relatados acima, se prolifera mais do que bactérias em intestinos grossos e delgados.
Uma sensação de impotência irremediável diante de algo que parece inexoravelmente caminhar em marcha à ré: briga nas mesas de bar, nos vagões de metrôs e em carros blindados, com a graça, a riqueza, o potencial e a gente especial que evidentemente estão contidas nessa mesma caixa. Como se a adolescente, sensual, bela e cheia de vida pela frente e, ao mesmo tempo, desengonçada, atrapalhada, pouco produtiva e desfocada, estivesse deixando para trás essa fase da vida e desenhando os primeiros traços do que pode vir ser uma vida adulta bem menos saudável, risonha e promissora do que tudo levava a crer...
Em trânsito
Tentar a sorte em outro lugar pode não ser exatamente uma novidade (apenas para usar novamente o exemplo da cidade mineira que ficou famosa pela exportação de cidadãos para os EUA, o fenômeno tem origem nos anos cinquenta e estima-se hoje que haja mais de 40 mil valadarenses vivendo em solo americano).
Mas ver gente que passou a vida inteira defendendo que nosso lugar é aqui – e que devemos empregar nossa energia, capacidade de trabalho e talento para tentar erguer a régua no lugar em que nascemos – começar a rever seus conceitos, comprar malas maiores e passar horas estudando o mercado de trabalho além-mar e preços de passagens para o exterior, talvez seja.
E com certeza é nova a constatação de que existe hoje uma quantidade significativa de pessoas que encontraram maneiras criativas de sequer terem exatamente um ponto no mapa ao qual estejam fixados. Gente que produz, se diverte e se realiza justamente por estar promovendo uma espécie de revisão de noções como país, raiz ou mesmo da simples idéia de morar em uma casa específica.
Nossa experiência aponta sempre para a mesma direção: perguntar bem costuma ser a melhor resposta. Assim, nesta edição, mais uma vez invertemos os sinais e partimos para tentar um outro jeito de produzir a reflexão que perseguimos sempre. Perguntas e provocações foram lançadas em rede numa espécie de mandala, que tem sim um centro, mas que não é comandada por ele, apenas é por razões e forças naturais, inspirada e magnetizada por aquele pólo.
Dali saíram as idéias que, mais que tudo, intencionavam detonar outras e outras e outras, que num efeito interessantíssimo que tem evidentemente a ver com as interações e conexões entre os milhões de células diferentes de um mesmo cérebro. O resultado está aí. Bem vivo, diverso e cheio de contornos móveis. Escolha uma das mais de cem portas, entre e vá navegando. Depois diga: vai ficar, vai sair ou vai ficar zanzando?
Paulo Lima, editor
P.S. Vale um novo registro: A Trip acaba de ser apontada como a revista mais inovadora do Brasil em pesquisa publicada pelo jornal Meio & Mensagem que avaliou todas as publicações editadas no país.