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Ócios do ofício

“O trabalho enobrece o homem.” “A mente ociosa é o quintal do demônio.” Não faltam provérbios desse tipo trafegando pelas vias às vezes muito sábias – e às vezes só medrosas – da obviedade popular. Nossa cultura cultua a labuta. No imaginário pedestre ou no alto pensamento, na direita ou na esquerda, na religião ou na indústria do entretenimento, a idéia de trabalho é sagrada.

Questiona-se freqüentemente as condições de trabalho ou as relações de trabalho. Não o conceito de trabalho. Nascemos para trabalhar. É unânime. Assim, o último sintoma de uma depressão clínica costuma ser a desistência do trabalho. Antes, desiste-se de todo o resto. Do amor, dos amigos, da família. O instinto de sobrevivência fala mais alto. E a maior causa de suicídio na sociedade contemporânea não é a traição amorosa ou a desilusão existencial. É o insucesso profissional. O trabalho é rei.

 

Uma das maiores calúnias históricas brasileiras é aquela que diz que “os nossos índios eram tão primitivos que não sabiam nem trabalhar”. E que assim “os portugueses tiveram que importar índios africanos, para escravizá-los, porque índio só trabalha longe da terra dele”. Além de servir como uma espécie de sinopse do enredo de terror que fundou as relações sociais no Brasil, a calúnia, que era ensinada na escola na minha infância, carrega uma incompreensão profunda da nossa cultura nativa.

Temos todo interesse em compreender essa faceta supostamente indolente da alma tabajara. Ela é nossa. A herança indígena está muito viva dentro de nós, queiramos ou não. A idéia de que os índios eram intrinsecamente incompetentes é uma das matrizes da sensação estúpida, mas ainda generalizada, de que nossa essência de brasileiros também é incompetente, cronicamente inviável.

 

Há uns 20 anos, Ailton Krenak, o mais admirável dos líderes indígenas nacionais, me disse que a principal lição de vida que o pai dele deixou foi a seguinte: “Você deve passar pelo mundo assim como um pássaro passa pelo céu. O vôo deve ser lindo e, depois que terminar, o céu deve continuar exatamente igual”. Ou seja, cante, dance, cace, plante, ria, chore, fale, transe, viva, morra. Mas deixe o mundo como o encontrou. É um ensinamento que parece contradizer tudo aquilo que as culturas dominantes no Ocidente e Oriente nos ensinam, que é passar pelo mundo essencialmente para alterá-lo. Para deixar a nossa marca. Para deixar fábricas, catedrais, CDs, tecidos, viadutos, computadores, qualquer coisa, nem que seja um texto impresso numa revista mensal.

 

Numa época em que a produção esbaforida de coisas atinge um nível que ameaça a própria existência de quem as produz, algumas perguntas antigas berram como um índio na floresta. Afinal, os nativos brasileiros não sabiam trabalhar ou não queriam trabalhar? Eles não entenderam o modo de produção europeu ou não aceitaram um valor que se opunha ao que havia de mais profundo em sua própria cultura, no que diz respeito à interação do homem com a realidade?

Essas perguntas poderiam ser lançadas na próxima assembléia da ONU sobre o aquecimento global. Valem para todo o mundo. Mas elas têm uma ressonância especial aqui no Brasil, país em que o desfile de uma escola de samba é mais organizado que a jornada de trabalho da maioria das empresas. Na visão indígena, seja ela tupi ou africana, a conservação da natureza está intimamente ligada ao prazer que se tem na vida. O vôo deve ser lindo, sempre.

 

Temos algo a reaprender com essa idéia simples, na busca de uma vocação produtiva mais sustentável. Não dá para viver esquecendo que a maioria das pessoas é infeliz no trabalho e que isso está na raiz do modelo de desenvolvimento autodestrutivo que trilhamos. Esse modelo, que convencionamos chamar de “ocidental”, também se distanciou do melhor do pensamento de seus próprios “primitivos”, seus fundadores da Grécia Antiga, esquecendo que a palavra grega para “trabalho” é “poeisis”. E que, sim, “poiesis” quer dizer “poesia”.

Nosso esforço produtivo não pode ter medo de ser mais poético, ou seja, mais pleno, mais total, mais integrado com as nossas necessidades existenciais mais profundas. E longe de mim acreditar no retorno a algum Olimpo irreal, alguma taba idealizada. Gosto de produzir. Gosto de escrever este texto. Gosto de ler outros textos. Adoro tecido, café, carro, câmera de vídeo, computador, Internet. E, como se sabe, índio também adora.

 

A questão não é excluir, mas harmonizar. Na busca de um caminho do meio, a rede que os americanos inventaram e a rede que os índios inventaram precisam uma da outra. Entre prazer e dever, toda seleção brasileira tem que achar seu Felipão.

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