O trator justiceiro
Contra a lei, seu Hamilton recusou-se a derrubar uma casa onde morava uma família com sete filhos. Contra a lei, fez o certo
Caro Paulo,
De repente o Jornal Nacional me emocionou. A notícia: seu Hamilton, tratorista e pai de nove filhos, na frente da polícia e da TV, recusou-se a cumprir um mandado judicial para derrubar a casa onde ilegalmente morava uma família com sete filhos. Ao receber voz de prisão, subiu de novo no trator para tentar cumprir o mandado, mas não conseguiu. E se recusou de novo: "Pode me prender porque eu não vou conseguir". Virou herói do bairro. E eu fiquei parado emocionado e pensando no que é certo e no que é errado.
Seu Hamilton não é um intelectual disposto a morrer por sua ideologia. É um homem comum que quer cumprir seu dever. A TV mostrou closes dele se debatendo entre o dever que o emprego e a lei o mandavam cumprir e sua consciência de homem comum que não via sentido na ordem recebida.
O que segurou seu Hamilton? Ele tinha todas as razões para não arriscar o emprego. Pelo menos nove bacuris o esperavam voltar para casa com emprego. Nove boas razões para contrariar sua consciência, garantir a sobrevivência e não ir preso. Mas não. Sem orgulho e arrogância, apenas confessou não conseguir. Obedecia seus limites.
Não acredito que as câmeras de TV tenham mudado o comportamento do seu Hamilton despertando nele um oportunista em busca de fama. O homem chorou de verdade e envergonhou-se por estar chorando. Era verdade. Seu Hamilton era de verdade. Seu gesto foi tão eloqüente que, em seguida, a crônica do eloqüente Jabor se limitou a poucas e brilhantes palavras para dizer que ?a nossa sociedade precisava de mais "criminosos" como este?.
De fato, ele obstruiu a lei e por isso cometeu um crime e quem comete crime é criminoso. Ele estava errado segundo a lei. Mas que lei? Lembrei dos tempos do Largo São Francisco, onde estudei direito no fim dos anos 60 e de quando comecei a freqüentar os livros do prof. Roberto Lira, da Escola Socialista de Direito Penal. Lá, aprendi que não podia existir justiça comum sem antes se fazer a justiça social. Para mim era uma revelação óbvia e revoltante, principalmente considerando o nosso Código, que mais protegia o patrimônio do que as pessoas.
Lembro-me agora de que estamos numa época de criticar e reformar leis. Não só a lei tributária e a previdenciária. Mas todas as leis formais e informais que regulam nossas relações que, se de um lado nos trouxe vivos e organizados até aqui, estão agora atravancando nosso desenvolvimento como pessoas e sociedade.
As leis formais têm fórum adequado para se debater e, mais cedo ou mais tarde, a pressão da realidade vai provocar a mudança. As leis informais é que são elas.
Como a lei da sobrevivência, que daria "inocência" ao seu Hamilton, essa precisa ser revogada. A lei da sobrevivência é a que afrouxa nossa consciência para que ela conviva com o que não concordamos. É a lei que nos perdoa por cumprir ordens que não fazem sentido para nós. É ela que nos protege da acusação de estar sendo injusto em nome da lei. Para revogar essas leis não precisamos de homens letrados nem juristas formados, mas de tratoristas de coragem como seu Hamilton.
Como já disse aqui uma vez, agir com coragem é agir com o coração, com a consciência de que estamos todos ligados e de que não existe o mal que feito ao outro não nos atinja também. Essa sim é a lei que quando contrariada nos pune a todos, retardando o nosso processo de amadurecimento e libertação. A bênção, seu Hamilton, que o senhor nos sirva de estímulo para desobedecer leis. A começar pela lei da sobrevivência, em nome do leite das crianças ou da cerveja da balada.
Fica com o abraço do companheiro de Arcadas,
E.T.: Trilha sonora para acompanhar a leitura desse texto: "Me deixa", de O Rappa. Ali se ouve "Hoje eu desafio o mundo sem sair da minha casa. Hoje eu sou um homem mais sincero e mais justo comigo. Podem os homens vir, mas não vão me abalar. Os cães farejam medo, logo não vão me encontrar".
*Ricardo Guimarães, presidente da Thymus Branding, cursou direito no Largo São Francisco e na faculdade da vida.