O sonho acabou?
Já é mais do que óbvio que o sonho desenvolvimentista não passa de um pesadelo
Não tenha nada contra sonhar, Mas já é mais do que óbvio que o sonho desenvolvimentista não passa de um pesadelo
Dentro do primeiro álbum pós-Beatles de John Lennon, lançado em 1970, está a canção “God”. E dentro da canção “God” está o célebre verso “the dream is over”, ou “o sonho acabou”.
Antes de chegar à famosa conclusão da canção, Lennon diz que “Deus é o conceito através do qual a gente mede a nossa dor”. Ele continua a provocação pop afirmando que não crê em uma série de ícones da simbologia mundial, de Hitler a Jesus, da ioga a Elvis Presley. Em determinado momento, logo antes de decretar o fim do sonho, o compositor diz que só acredita em si mesmo e, é claro, em Yoko.
Acontece que Deus, existindo ou não, se vingou. Se a letra de “God” celebra o realismo individual com que Lennon se liberta das ilusões coletivas, a frase “o sonho acabou” se transformou com o tempo num melancólico lema universal usado justamente para lamentar o fim de alguma utopia coletiva. Tenho pensado na célebre frase do marido da Yoko de um modo bem diferente, tanto do próprio pensamento existencial de Lennon, quanto do imaginário hipongo-utopista. É a crise. Aqueles que a geraram podem até ter os olhos azuis notados por Lula, mas os mantiveram bem fechados. E acreditaram que a atividade econômica mundial poderia ser aquecida não só sem limite e sem direção, mas também sem consequência. Ou seja, estavam sonhando.
O que é mais tristemente engraçado nessa história é que o grupo que sonhou (sonha) este mundo em que a transformação econômica é soberana e inquestionável não usa o figurino tradicional da utopia. Ao contrário, é gente enfiada em ternos e vestidos de grife, macacões ou jalecos, empunhando planilhas de Excel, ferramentas de trabalho e cartões de crédito. É gente do mundo real e realista. São eles (nós) que, imaginando e realizando seu sonho ilimitado de consumo, imaginam e realizam o sonho que consome o planeta.
Lentes quebradas
No meio dessa crise, que pelo menos já teve o enorme mérito de deixar mais claro que as questões econômica e ambiental são uma questão só, eu adoraria ajeitar meus óculos redondos e decretar: “O sonho acabou”. Não que eu tenha algo contra sonhar. Ao contrário, eu acredito que a vida é sonho. Mas já é mais do que óbvio que esse sonho inconsequentemente desenvolvimentista não passa, a médio prazo, de um pesadelo. E eu sou contra pesadelos. Sobretudo aqueles que trazem em si consequências bem reais para a vida acordada de cada um.
O primeiro passo para combater um pesadelo é manter os olhos bem abertos para as contradições da vida. Recusar simbolismos fáceis e redutores. Entender, por exemplo, que a mesma força motriz que disseminou antibióticos e curou doenças também gerou uma pandemia mortal de bactérias resistentes. Democratizou a informação e criou níveis insustentáveis de poluição neurológica. Aqueceu o planeta e tirou milhões de pessoas da linha de pobreza.
Gostaria de acreditar que a crise pudesse significar um despertar profundo e individual para a complexidade do mundo. Não sei, sinceramente, se é o caso. Animal em extinção, vejo a questão “ecoeconômica” ainda muito presa a um coletivismo ideológico paralisante, a um fla-flu simplista de apontamento de dedos.
Mas, nestes momentos pessimistas, quando o pesadelo resiste, gosto de pensar que foi esse mesmo mundo aquecido que elegeu Barack Obama para dirigi-lo. Não consigo imaginar um homem mais preparado para lidar com a sua complexidade. Um sonho de pessoa. Dele, espero que não me acordem.
*CARLOS NADER, 43, é um homem de mídia. Seu e-mail é carlos_nader@hotmail.com