O samba pede passagem

Samba da vela, Quinteto em branco e preto e, agora, Os Prettos: os irmãos Magnu e Maurílio

por Amanda Nunes em

A infância foi no meio de rodas de samba e serestas, com pessoas tocando instrumentos durante toda a noite. Os irmãos Magnu Sousá e Maurílio de Oliveira, filhos de Tônia Xique e Gilberto Xique Xique – nome artístico de seus pais, inspirados na cidade de Xique Xique, na Bahia – hoje têm 37 e 35 anos. O mais velho nasceu no centro de São Paulo, no bairro de Santa Cecília. Já Maurílio, em Santa Catarina, mas se criou junto com os irmãos (são em quatro: três homens e uma mulher) nas ruas paulistanas dos diversos bairros que moraram. Foram mais de setenta casas, segundo os cantores.

Eles integraram o Quinteto em Branco e Preto e foram dois dos quatro criadores do Samba da Vela, um dos eventos de samba mais importantes da capital paulistana. Nele, os sambistas se reúnem em volta de uma vela para tocar samba até que ela se apague. Foi fundado dia 17 de julho de 2000 e o que era para ser um encontro de amigos, recebe hoje cerca de duzentas pessoas às segundas-feiras, em Santo Amaro, bairro da zona sul de São Paulo. Tem como madrinha Beth Carvalho e até mesmo Flea, o baixista do Red Hot Chilli Peppers, já foi ao evento pesquisar elementos da música brasileira.

Hoje, estão trabalhando em cima do projeto Os Prettos – já que o Quinteto deu uma pausa. Para a Trip, eles falaram bastante sobre o samba, preconceito e o novo trabalho.

Trip Como foi idealizar o samba da vela?
Magnu Sousá - O Samba da Vela começou quando sentimos a necessidade cantar os sambas de nossa autoria. A gente tinha muita música guardada na gaveta e não tinha como mostrar, ainda mais em São Paulo - onde há escassez de sambistas. Um dia nós nos encontramos com o Paquera (Jose Alfredo Gonçalves de Miranda) e o Chapinha (José Marilton da Cruz) em um bar e começamos a tocar. Quando nos demos conta, já tinha se passado muitas horas e tocando só aqueles sambas de nossa autoria. Depois desse dia, passamos a nos encontrar toda segunda-feira...

Maurílio de Oliveira - A ideia inicial era que não fosse aberto ao público e só aos compositores. Até o dia em que que alguém levou uma pessoa, e a pessoa levou mais alguém e ficamos em 12 pessoas. Depois, quando a Beth Carvalho, nossa madrinha, foi até lá, o publicou triplicou. Não conseguimos mais controlar e foi crescendo naturalmente. Hoje chega em torno de 150 pessoas. Virou uma outra coisa, mas com a mesma essência.

Existe alguma simbologia por trás da vela? Por que ela precisa terminar para acabar o samba?
Magnu - Na verdade não. A gente se reunia para tocar e no outro dia todo mundo tinha que acordar cedo, seguir a vida e trabalhar. Eu e Maurílio sempre trabalhamos com música, mas o Paquera, por exemplo, era eletricista, o Chapinha também tinha seus compromissos... Então, resolvemos inventar uma formar para nos lembrar que tínhamos que parar de tocar não muito tarde. Maurílio deu a ideia do galo; “Quando galo tocar, a gente para”. Eu sugeri uma ampulheta, o Chapinha um despertador. E aí, o Paquera, finalmente, veio com a ideia da vela, que funciona como um cronometro.

Maurílio - E isso é um barato, porque a pessoa chega, vê uma vela e um monte de gente tocando... Parece mais um ritual. E no fim, foi o que virou. Um ritual. O mais legal é que depois fomos descobrindo outras coisas sobre o Samba da Vela que foram por acaso. Por exemplo, segunda-feira é o dia das almas, o fogo gera energia... Enfim, acabou virando um culto ao samba.

E quanto tempo a vela fica acesa?
Magnu - Dura em torno de 3 horas e meia, normalmente. Mas o tempo vai passando e todo mundo vai ficando meio “nego véio”, então, as vezes, nós cortamos um pedacinho da vela para o evento acabar mais cedo. E também porque hoje vai muita criança com a família.

Tem aquela história de que, antigamente, quem fazia samba era malandro e até mesmo perseguido pela polícia. Vocês acham que hoje o samba ainda é marginalizado ?
Magnu -  Eu vejo da seguinte forma: Antigamente era marginalizado, mas era de forma direta . Era um gênero que era visto como coisa de negro, marginal, vagabundo e ninguém queria se misturar. Agora a coisa mudou e o samba hoje sofre um apartheid velado, que não vem diretamente das pessoas, mas sim através da mídia. A gente sofre muito com isso, porque nós enxergamos o samba como um caminho de profissionalização das pessoas que o fazem e não só a situação da cerveja gelada na mesa de bar. Existe um preconceito.

 

"O samba, que é genuinamente brasileiro, fica muitas vezes em segundo plano"

 

Contra o samba?
Magnu - A mídia tem preferência por outros gêneros. E o samba, que é genuinamente brasileiro, fica muitas vezes em segundo plano. O tratamento que se dá ao samba é muito diferente e abaixo do que é dado aos outros gêneros. Se você falar com mais artistas eles vão dizer que o camarim é diferenciado, o tratamento é diferenciado. Nos grandes festivais... Samba? Não tem.

Maurílio Até as rádios especializadas em música popular brasileira não tocam samba!

É inegável a diferença entre samba carioca e samba paulista. Os instrumentos, melodias e o caráter social estão nos dois, só que de forma diferente. Vocês acreditam que o ambiente influencia na essência da música?
Magnu - Sim. É tudo questão de linguagem. A gente trafega pelo Brasil todo e sabemos que cada lugar possui a sua linguagem. E é aí que mora a diferença. A forma de falar, de pensar, a forma de visualizar o local que você está. Quando se está no Rio de Janeiro você olha para cima e vê cristo redentor, pão de açúcar. Então, a forma com que o carioca escreve seu samba é totalmente diferente da de São Paulo.

E na prática como isso muda a música?
Magnu - Eu acho que isso muda de autor para autor, mas, para mim, estando no Rio, eu olho muito o cenário carioca. Eu estando em São Paulo, olho as pessoas. E isso muda tudo. Fora as diferenças da tradição, o Samba paulista tem uma influência do samba do interior, o campineiro. Já no Rio de Janeiro, a influência vem do samba da Bahia, aquele se formou no morro com instrumentos pequenos. Tudo isso muda a batida, a levada e a execução.

Vocês acham que existe preconceito com o samba paulista?
Maurílio - Sim! Já até vivemos isso! Fomos em Vila Isabel, no Rio de Janeiro, com nossa madrinha Beth Carvalho. Quando chegamos lá, ela deu um grito de alerta nos anunciando e quando fomos assumir os instrumentos, o pessoal da velha guarda levantou e disse: “Paulista não toca no meu instrumento!”. Todos saíram, só restou um. Arrumamos outros instrumentos e conforme fomos cantando canções da Vila Isabel, do Noel Rosa e do Martinho da Vila, ficou tudo bem. Ficamos até amigos do pessoal depois. E lá no Rio quando você vira amigo das pessoas, você já vira “um filho da casa”, coisa que em São Paulo não existe.

Magnu - A gente cresceu ouvindo que o Rio de Janeiro é a terra do samba.

Como a vivência em São Paulo influenciou a música de vocês?
Magnu - Nossa música é urbana total. Tanto nas letras, como na parte melódica também. Embora o samba tenha um pouco da característica rural, aquela coisa do samba paulista, não absorvemos muito isso na nossa música, não.

Maurílio Teve uma época da nossa vida em que morávamos nesses bairros mais periféricos e isso nos passava a sensação de morar no morro. Então influenciava em uma forma diferente de compor, falávamos mais daquele cotidiano e daquelas pessoas.

O Samba perdeu espaço nos últimos tempos?
Magnu - Quer um exemplo simples? Quantos jovens hoje querem ser Emicida e quantos querem ser um sambista? Não existe mais associação com a imagem do sambista. Na verdade, não acho que o samba tenha perdido espaço, acho que ele deixou de ganhar.

Maurílio - Isso fica claro quando vemos jovens talentosos indo para o Hip Hop, pagode, funk, sertanejo e outros gêneros. Por que se ele fica no samba, não tem mercado. Não existe renovação da música brasileira. Mas não sei exatamente onde o problema está, se é a mídia que não se interessa pelo produto, e assim “ indiretamente ele deixa de existir”. Ou se a própria cultura do samba também foi perdendo espaço e deixando de investir.

 

"A maioria das canções [de samba] eram compostas por negros, mas só quem aparecia eram os brancos"

 

E o samba feito por branco, ele tem mais espaço na mídia?
Magnu - Se a gente pegar no início do século passado, no começo do samba, a maioria das canções eram compostas por negros, mas só quem aparecia eram os brancos. Noel Rosa, Carmem Miranda, Almirante, Chico Alves e Moreira da Silva são alguns exemplos disso. Os donos das rádios antigamente não queriam investir em artistas negros para não sujar a imagem. Os cantores pegavam as composições do pessoal do morro, gravavam e representavam apenas. Pouquíssimos sambistas negros tocaram no rádio e botaram a cara para aparecer. Hoje, isso acontece também, mas veladamente. Quando um artista negro estoura no samba, a música é vista como chula. Já o branco é bem aceito. Nesse caso, acho que é em todos os gêneros. A música do branco pode ser pseudo intelectualizada, a do negro, é só “tchu tchu daqui, balada dali...”

Enquanto Quinteto Branco e Preto vocês fizeram parceria com o Edi Rock e agora recentemente com Emicida. Vocês acham que o samba e o rap, por maiores que sejam as diferenças melódicas, se completam? Conversam entre si?
Maurílio - Demais, e essa ficha demorou pra cair. Tem muito sambista que diz que isso não é do samba, que não pode... Mas não existe isso, o que existe é fazer algo bem feito. Se o público gosta, já vale! Por isso que não criticamos o pagode. O pagode é um movimento muito bem aceito, eles têm os maiores cachês. Como criticar?

Magnu - A verdade é que não podemos deixar que o samba viva no anacronismo. Durante muito tempo, até enquanto estávamos no Quinteto, vivemos um bom tempo da nossa vida naquele estereótipo de sambista – calça branca, chapéu e sapato bicolor - porque era uma espécie de “uniforme”. O tempo passou e nós não conseguíamos mais nos desvencilhar disso. E percebemos que tínhamos uma imagem de 1920 no ano de 2000. Quando resolvemos quebrar isso, interferiu também na parte melódica porque passamos a fazer parcerias com Paulo Miklos, Emicida, Edi Rock, Rappin'Hood etc. Teve uma vez que fizemos um parceira com o Samba da Vela e o Sepultura. Tocamos rock misturado com samba!

E Os Prettos, como é o projeto?
Magnu Os Prettos é uma coisa de irmão, que a gente sempre teve. Com a parada do Quinteto, a gente resolveu juntar as nossas ideias individuais e procuramos manter pelo menos por um período. Por isso é um projeto especial, até porque a banda acabou do nada. Já estamos gravando o disco Sou todo misturado em samba com parcerias que vão surgindo ao longo do caminho.

Maurílio - Pra esse trabalho especificamente, estamos continuando o que o Quinteto fazia – até porque as músicas eram em maioria nossas. Então a gente vai aproveitar esse gancho pra mostrar o que a gente faz e que tem a ver com o Quinteto e também passear por algumas partes particulares. A ideia é trazer as influências de tudo que a gente ouviu para as nossas composições. A gente vai realçar o que tem de samba em tudo que há.

A edição de abril/2014 da Trip é especial sobre racismo: Ser negro no Brasil é foda. Vocês acham que existe preconceito de cor no Brasil?
Magnu - Infelizmente no Brasil a gente sofre preconceitos de diversas formas. Orientação sexual, social, racial... Tem o preconceito com a mulher. É algo enraizado desde a sua formação.

Maurílio = Lamentável dizer, mas em tudo. Algumas coisas mudaram... Por exemplo, outro dia eu disse para o Thiaguinho que ele conseguiu levar o negro pra música de uma forma que não acontecia. Hoje você vê uma menina que mora no Morumbi comprando um CD de pagode, sabe? É uma coisa que vem de muito tempo.

Pra fechar, Dorival Caymmi dizia que "Quem não gosta de samba bom sujeito não é"... Vocês concordam?
Magnu Sou mais o Caetano Veloso quando ele canta “O samba ainda vai nascer/O samba ainda não chegou/O samba não vai morrer/Veja o dia ainda não raiou/O samba é o pai do prazer/O samba é o filho da dor/O grande poder transformador”

Maurílio - Eu acho que quem não gosta de samba, ainda não entendeu. As pessoas se influenciam pelo momento, depende da visão e de como você teve esse contato. Então quem não gosta de samba é bom sujeito sim, só precisa ter a oportunidade de ouvir.

Vai lá: facebook.com/prettos.oficial

Crédito: Divulgação
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