O primeiro dia

Nosso colunista deixa a penitenciária de Serra Azul e encara a realidade brasileira três décadas depois de ser condenado e preso

por Luiz Alberto Mendes em

Estava no setor de educação, concluindo um artigo para minha coluna na TRIP, quando fui chamado. Quando cheguei ao guarda que me requisitava, este disse-me: "Até que enfim você vai embora!". Passava dos 30 anos preso e qualquer pequeno abuso era demasiado. Aquele guarda parecia estar tirando uma com a minha cara. Como eu iria embora? Estava condenado a um montão de anos na prisão. Fechei a cara, olhei feio e perguntei se estava com brincadeira comigo. Não, não estava. A ordem era para que eu arrumasse minhas coisas. Seria colocado em liberdade. Era quase um pé na bunda. Entrei para dentro do raio em que morava ainda sem acreditar.

Os companheiros do xadrez reuniram-se a mim. Contei-lhes a novidade. Acreditaram mais do que eu. Me aconselharam a procurar o setor de inclusão antes de arrumar minhas coisas. O guarda, na gaiola, não queria me soltar. Algo de pastoso embargava a voz. Quis mandar o filho-da-puta para aquele lugar. Mas não podia. Ainda não. Um desespero se infiltrava por entre os dentes, tudo parecia voraz e escapando-me pelas frestas. Consegui chegar até a inclusão. Felizmente os guardas que ali trabalhavam eram amistosos e me atenderam com respeito. Sim, havia um alvará de soltura em meu nome. Pedi que me mostrassem.

Ver e crer

O chefe dos funcionários não queria mostrar; era contra as normas. Mas, se fosse verdade, eu tinha direito, por lei, a ter acesso. Diante da minha argumentação, o homem foi obrigado a ceder. De tudo o que sabia, eu não tinha direitos legais de libertação. Quando li o documento, compreendi. O juiz havia extinguido todas as minhas penas, baseado no artigo 75 do Código Penal, a lei que regulamenta a pena máxima brasileira: 30 anos.

Eu, que havia cumprido mais de 30 anos, mas há muito perdera as esperanças de usufruir dos benefícios dessa lei, agora estava livre. E, melhor ainda, sem dever nada para a justiça e nem a mais ninguém. Esse fora meu sonho: sair limpo. Olhei pela janela gradeada. O vento brincava redemoinhos de folhas secas, no silêncio da manhã morna. Meu Deus! Era grande demais! Eu, esse pobre-diabo, estava livre então? Um suor queimou o rosto e dos olhos desceu uma salmoura para a boca. Em pânico instantâneo, flutuei sem chão.

Voltei para a cela, confirmei com os companheiros e fui abraçado por todos eles. Comecei a distribuir minhas coisas. Tralha de preso, acumulada ao longo dos anos. Coisas queridas que fui me desfazendo grato a elas pelo bem que me fizeram. Livros, roupas, material de escrita e higiene. De repente eu os amava. Rixas, mágoas e incompatibilidades. Tudo estava esquecido. Só restava a tristeza de ler a angústia em seus olhos: eles também não iriam, como eu. Deixei telefone e endereço. Que mandassem me procurar em caso de necessidade.

Quando observei dois deles discutindo por conta de uma bermuda que eu deixara, fui saindo fora. Há séculos que aquele não era mais o meu meio. Já não era mais um deles. Aquele alvará nos diferenciava. Levei somente o que não podia deixar: os dois livros que escrevi, cartas, manuscritos de livros, cadernos de apontamentos e estudos.

No setor de inclusão, um dos guardas pintou meus dedos de preto e me identificou no papel. Precisavam ter certeza de que eu era eu mesmo. A marca de meus dedos era mais importante que eu, ali presente.

Assinei alguns papéis, sequer me importei. Assinaria qualquer coisa, conquanto me soltassem. O que me fora uma surpresa, injetado por 30 anos de ansiedade, tornava-se necessidade desesperada.

Quem me espera

E minha companheira, como receberia aquela notícia, depois de tantos anos de espera angustiosa? Meus filhos, como se sentiriam com minha presença em suas vidas?

E demora. Queria sair rápido. De repente, poderiam descobrir algum engano. Não queria acreditar ainda, mas já havia embarcado naquela viagem. Agora eu queria. Não mandei que brincassem comigo.

O guarda foi me levando para a frente da prisão. Passei dois portões pensando nas vezes em que vira, morto de inveja, companheiros ultrapassando-os. Agora era minha vez. Passamos pela muralha e chegamos ao prédio da administração. Segui o guarda.

Paramos em um guichê. Era o setor de pecúlio. Uma senhora pediu meu nome, educadamente. Era um outro tratamento. Passou-me o dinheiro que estava em meu nome e desejou-me boa sorte. Passamos no setor de assistência social. Queria telefonar. Passaram-me o telefone. Liguei, caiu na secretária eletrônica. Dei um gritão de socorro. Ela atendeu imediatamente.

Sua voz era como um sol lambuzando tudo de amarelo. Não conseguia acreditar. Minhas ansiedades voaram como borboletas. Ela dizia: "Meu Deus!". E eu respondia: Minha vida! Estou voltando para casa, como na música do Lulu Santos, de vez. Despertos, abruptamente, de estar acordados, nós iríamos reiniciar, com os olhos cheios de vida.

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