O presidente é coisa nossa
A Trip revela como seria o Brasil se Silvio Santes fosse eleito à presidência em 1989
O presidente é coisa nossa
Em um furo de reportagem ficcional, a Trip revela como seria o brasil se silvio santos fosse eleito à presidência em 1989: roque como chefe do cerimonial, aviõezinhos de cruzados novos jogados no ar pela esquadrilha da fumaça e a porta da esperança no lugar do bolsa família como programa social.
Quando Roque, o velho animador de auditório promovido a chefe do cerimonial da Presidência da República, deu o “OK”, a massa, qual o milagre de Moisés no mar Vermelho, abriu caminho para que o Rolls-Royce, modelo Silver Wraith, deslizasse tranqüilamente com o ex-camelô a bordo.
Não fosse um desgovernado carrinho de pipoca que atravessou na frente do nobre conversível, depois de um desmaio do emotivo popular que o comandava, tudo teria sido perfeito, “mas tudo bem, foi lindo, só um susto, calma, gente”, o pequeno homem-gabiru do cerimonial cuidou de confortar imediatamente o populacho.
O Rolls-Royce conduziu então aquele sorriso rumo ao sonhado destino: o Palácio do Planalto. Sim, amigo, quem olhasse mais de longe via apenas um sorriso suspenso a 10 km/h. Mais aceso do que o sorriso do gato de Alice no país das maravilhas.
O novo mandatário, o primeiro eleito pelo voto direto depois da ditadura, vislumbrava mesmo um futuro de glórias para a pátria amada. O melhor de tudo, pensava e tornava mais nítido ainda o sorriso de camelô ambulante: “Depois de tanto tempo exibindo aqueles cívicos manés no quadro ‘A semana do presidente’, eu mesmo serei o orgulhoso personagem. O presidente c’est moi, vê que engraçado, minhas patrióticas colegas de trabalho!”.
O sorriso-homem, àquela altura, sorria mais bonito do que o cachorro que sorri latindo no portão naquela música do rei Roberto.
Tudo havia sido milagroso mesmo: o señor do Baú teve apenas dez dias de campanha no seu teste na urna, quando substituiu o pastor Armando Corrêa, do Partido Municipalista Brasileiro (PMN), e bateu o favoritíssimo Collor de Mello.
“Silvio Santos já chegou, ô, ô, ô, ô”, dizia o seu jingle, seguido do próprio SS, que explicava didaticamente o roletrando democrático: “Como não dá mais tempo de mudar a cédula, votando no 26, Corrêa, você estará votando no Silvio Santos”.
Tal episódio histórico ocorreu muito antes de o mesmo Rolls-Royce dar assento a um ex-metalúrgico que faria aquela inacreditável trajetória por duas ocasiões e, movido pelo etanol da popularidade, insinuaria com a terceira viagem. Estamos na tarde de 15 de março de 1990 da era pré-iPod.
Quem quer dinheirooo? As caravanas de todos os rincões entoam o “Silvio Santos já chegou, ôôôô!”. No que SS responde: “Quem quer dinheiroo?”. Nesse exato momento a Esquadrilha da Fumaça fazia piruetas no céu e despejava cédulas milagrosas na terra.
Na chegada à Praça dos Três Poderes, Roque deixa as colegas de trabalho em um grau de histeria populista só alcançado em três momentos da história da humanidade: pela moça do filme O diabo na carne de Miss Jones, pelos pobres na volta democrática de papai Getúlio Vargas ao Palácio do Catete (1951) e talvez em algum concerto de Madonna nas aldeias do Terceiro Mundo.
As caravanas de todos os rincões brasileiros acenam com os seus carnês inadimplentes. O homem do Baú, ainda sob o efeito da felicidade que jorrou das urnas, havia prometido anistia ampla geral e irrestrita aos devedores.Roque pede silêncio. Na companhia da primeira-dama, dona Íris, Silvio chega ao parlatório para o discurso de posse.
Zunzunzum entre colunistas políticos. Ricardo Noblat canta a bola no ouvido de uma foca que come moscas abestalhada com o sorriso-presidente: o doutor Roberto boicotou a festa, não veio a Brasília, se liga e apura, ô jovem moçoila. Como era do conhecimento até do mais ingênuo flamingo rosa de dona Lili Marinho, o companheiro de imprensa das Organizações Globo havia tramado contra a candidatura do então líder absoluto do segundo lugar televisivo.
“Minhas queridas colegas de trabalho, por dever cívico, terei que admitir a presença do macho em nossas saudações e, pior, também em nossos auditórios... Eu diria [risos] que essa é a única desvantagem em me tornar presidente da República neste exato instante... Meus colegas e minhas colegas de trabalho...”
No gargarejo, o bigode do Sarney, o homem do “brasileiros e brasileiras”, se ajeita para passar a faixa... As caravanas de todos os rincões entoam o “Silvio Santos já chegou, ôôôô!”.
No que SS responde, objetivo qual a agenda neoliberal pós-queda do Muro de Berlim que acabara de honrar no parlatório diante dos barões assinalados da Fiesp e de todas as casas-grandes: “Quem quer dinheiroo?”.
Nesse exato momento a Esquadrilha da Fumaça fazia piruetas no céu e despejava cédulas milagrosas na terra. A merda é que de cada NCz$ 1 jogado lá de cima só conseguia chegar uma incólume moeda de uns NCz$ 0,20 aqui embaixo. Estamos na época do cruzado novo.
Sim, havia mais mistério entre o céu e a terra do que imaginava a vã economia de outrora
Pacote econômico
Ops! Ao perceber aquele fenômeno nada meteorológico da sua chuva monetária, o sorriso teve uma idéia, fiat lux, nada de desgaste na imagem com generosas cédulas atiradas aos macacos e macacas de auditório desta gloriosa Bananolândia.
Foi aí que nomeou, imediatamente, como ministra da Fazenda, Economia e Planejamento a brava sambista e jurada do seu programa Aracy de Almeida. “Mas a Aracy já morreu faz dois anos, patrão”, advertiu o tipógrafo do Diário Oficial ao passar ao papel a tal nomeação. “Morreu para você, ingrato, Araca mora e vive para sempre em mi corazón.”
Por via das dúvidas, mesmo que um governo televisivo pudesse muito bem e legitimamente trapacear nas edições – os vivos e os mortos – , SS recorreu ao amigo Chico Xavier lá nas Minas Gerais. Problema resolvido: o próprio espírita e a sua força na peruca despachariam em nome de sua excelência Araca.
Em vez do confisco do Plano Collor, que estava misteriosamente em curso na cabeça de outra mulher, a Zélia, já escalada para eventual ministra do candidato favorito, a brava Aracy, mesmo não sendo em carne e osso, aboliu o cruzado novo e adotou, no ato, o mango como moeda oficial da taba. Tão valorizado como a severidade e o pão-durismo de Aracy no julgamento do show de calouros, o mango, $M, nasceu parelho com o forte dólar. Os exportadores de víveres e bananas ficaram meio cabreiros; os importadores amaram.
Aracy acabou definitivamente com aquela história, consagrada inclusive na voz de um personagem do filme Rio babilônia (1982), de que o Brasil é o único país do mundo em que “puta goza, traficante cheira e o dólar paralelo é mais baixo que o dólar oficial”.
Tudo pelo social
Além da prometida e cumprida anistia ampla aos devedores dos carnês do Baú, o presidente SS levou a Porta da Esperança para todo o Brasil, um programa mais amplo do que seria no futuro o Bolsa Família do ex-metalúrgico. A diferença é que no governo de SS a regra é ser abençoado pelo destino.
“Não basta ser pobre, tem que nascer com a bunda pra lua”, eis o mantra do seu Ministério da Sorte e do Azar S/A, inicialmente sob o comando de Sônia Lima, uma farta morenaça de olhos atlânticos, por coincidência também do seu júri. Pelo mesmo cargo passariam ainda a Flor, a doce e igualmente jurada, e o Jorge Lafond, nossa digníssima Vera Verão, completando a pioneira democracia de cotas e mestiçagens do homem do Baú.
No Ministério da Justiça, óbvio, Wagner Montes, da mesma família do júri, com a mesma pegada do seu programa O povo na TV, na emissora do pai-patrão-presidente. A regra era clara: não foi contemplado na Porta da Esperança, cadeia no vagabundo, algema no delinqüente. Além de ser pobre nem sorte tem na vida, ora porra!
Show do milhão
É declarado automaticamente vencedor aquele funcionário público, valendo até o terceiro escalão, que alcançar o primeiro milhão na base do “por fora”, do caixa 2, sem nem sequer um chamado para depor em alguma CPI da vida, resguardadas as especulações maldosas na imprensa e a inveja dos opositores que cairiam muito mais cedo na ratoeira.
Mesmo que o espetáculo do crescimento pessoal e da auto-ajuda se desse “sob a paz do seu sorriso meus sonhos realizo”, SS não era culpado por nada, era sempre o último a saber, como um honrado, cívico e ilibado corno patriótico que se preze.
Você quer trocar...
Assediado pelas indicações políticas de sua vasta aliança, afinal de contas fora eleito pelo evangélico PMN, mas com o apoio implícito do PFL e de todas as colorações possíveis da redemocratização mestiça brasileira, SS tinha mesmo que adotar um critério familiar para decidir sobre a partilha dos cargos.
O recurso do método foi o quadro do seu longevo programa televiso donde um desalmado cliente do Baú entra numa cabine tão indevassável quanto a cabine das eleições e, sem ouvir nada que venha do auditório ou do além, recebe ordem para colocar um fone no ouvido. Daí segue uma pergunta na linha “tudo ou nada”, a moral da história, tipo “você quer trocar um BMW zerinho por um pente Flamengo usado?”.
Foi nessa onda que o glorioso Pedro de Lara, também do júri, sim, os jurados tinham prioridade na guerra do primeiro escalão, perdeu o Ministério da Cultura...
“Ponha o fone, Pedro, ponha o fone, quero ver se você é macho mesmo... Você quer trocar o Ministério da Cultura por uma broa de milho?”, indagou o velho Silvio, citando a broa, mais uma vez profético, como linha estética de um dos seus próximos sucessores.
Donde o inimitável de Lara, titubeante, porém iluminado contra os abacaxis existenciais, berrou um SIMM que rachou o vidro da cabine. Estava possuído qual a garotinha do filme O exorcista.
Não deu para ele, ficou com o Pablo, aquele sensível rapaz do “Qual é a música”. O candidato dos sonhos do Silvio era alguém do grupo Secos & Molhados, mas a opção foi barrada pela macheza coronelística e nada liberal do PFL. Sempre na vanguarda, gestões depois Gilberto Gil, o autor de “Super- homem, a canção”, assumiria o esmo posto.
Cobiçadíssimo cargo do segundo escalão, o comando da rede Ceasa, espécie de Refazenda Moral, nicho dos trabalhistas do PTB por excelência, ficou com o Sérgio Mallandro, óbvio dos óbvios, muito antes que o abacateiro de Gil acatasse o teu ato e que brincássemos no regato, como o pato e o leão do governo metalúrgico.
É com você, Lombardi
Fim de mandato, chama o Rolls-Royce para o próximo, velho Roque, e vamos embora dessa terra seca e sem futuro, homem de Deus.
Para celebrar um impávido, ímpio e irreparável governo, um mandato que passou em todos os testes das janelas da moral pequeno-burguesa, longe do alcance das CPIs e de outras armadilhas da vaidade e da inveja dos homens públicos com origem na casa-grande, SS promoveu, ao vivo como todo o seu mandato, uma Casa dos Ministros – atração que copiaria mais adiante na Casa dos artistas, donde finalmente o populacho tomou conhecimento das picuinhas, sururus e mumunhas que fazem parte do jogo do poder de fato e de direito, por supuesto.
O governo acabou no justo momento em que Elke Maravilha, então ministra da Saúde Bucal & Espiritual, patolava o Feliz, Felisberto Duarte, o homem do tempo do Aqui agora (SBT), debaixo de um belo e superfaturado edredom oficial de pena de ganso. Nunca na história deste país o populacho teve o “piriri pororó” que merece!
* Xico Sá, então repórter de política em 1989, morador da SQN 404, em Brasília, acompanhou, passo a passo, Silvio Santos na sua tentativa de se tornar candidato à Presidência da República em 1989