O ponto de inflexão
Em plena virada de ano, esta edição da Trip se propõe a olhar para o imponderável
Descartadas algumas atividades temporárias na infância e na adolescência, minha primeira experiência mais séria de trabalho foi como professor de natação. Talvez monitor fosse um termo mais apropriado, já que, aos 16 anos de idade, mesmo no auge da saúde e praticando o polo aquático de forma competitiva e quase obsessiva, orientar os alunos conforme a preleção dos verdadeiros professores era a minha função. Depois de voltar da escola, almoçava rápido e seguia para a Sanacqua, muito mais uma espécie de clínica de reabilitação aquática do que propriamente um local como os que hoje ostentam o nome de academia na fachada.
O fundador era um dos maiores nomes do polo aquático de todos os tempos, o húngaro Aladar Szabo, uma figura tão indescritível e surpreendente quanto sua trajetória. O sujeito que escapou da dominação russa em seu país rumando para a Itália era faixa preta – ou algo parecido – em jiu-jítsu e havia sido piloto de moto-velocidade na Europa. Numa corrida, Szabo teria sofrido um acidente que o deixou incapacitado para o esporte. Com uma vida passada na água e um conhecimento de seu corpo fora do comum, ele mesmo desenvolveu um método de fisioterapia e exercícios no meio líquido que não só o devolveu ao esporte como permitiu que, já naturalizado brasileiro, defendesse o país na conquista do histórico título pan-americano de 1963, que parecia absolutamente impossível aos nossos aquapolistas da época e que continua soando como algo inatingível aos atletas contemporâneos.
BIBI
Ainda sobre meu primeiro patrão, me lembro de seu extremo cuidado e das orientações severas com relação às crianças. Nas primeiras turmas do dia, atendíamos deficientes físicos e mentais. Crianças com problemas motores, jovens com síndrome de Down (por onde andará o Bibi, meu querido aluno Down?), figuras de todos os tipos e características; no meio da tarde vinham as crianças pequenas, adoráveis cidadãos pós-bebês de 3 anos de idade com suas sunguinhas, biquininhos e as preciosas boias de braços. Szabo supervisionava pessoalmente cada monitor ou professor, para que tivessem em seus braços no máximo três daqueles aluninhos. Atenção total. No final da tarde e começo da noite era a vez dos “executivos”. As figuras entre 35 e 60 anos que chegavam, me lembro bem, em estados físicos e psicológicos que inspiravam cuidados. Invariavelmente, depois das aulas acabavam saindo leves e desanuviados, como se flutuassem na direção do vestiário.
Naquele ano intenso de trabalho, estudo e treinos (às 19 horas, depois do trabalho, seguia para os treinos da equipe sub-21 campeã paulista de polo de 1979, da qual cheguei a ser capitão), aprendi muita coisa: usar as pernas para mudar a direção de forma muito ágil na natação com a cabeça fora da água; como uma pessoa que aos olhos de muitos é vista como “deficiente” é na verdade um ser que conseguiu acumular e espalhar apenas amor deixando tudo o que não interessa de lado; como a perseverança, o esporte e o carinho, não necessariamente nessa ordem, podem transformar positivamente quem realmente quiser. Aprendi também que não queria ser um “executivo”, se aquilo representasse chegar ao fim do dia como se alguém tivesse passado horas tentando arrancar meu corpo de minha alma.
Mas a lição mais dura de todas veio numa tarde qualquer, com um solzinho que entrava pelas frestas da cobertura de alumínio sobre a piscina. O próprio Szabo, que depois das aulas usava o tempo para nos ensinar técnicas e truques do polo que só ele conhecia, veio com uma feição diferente. Em poucas palavras ele informou, sem nos olhar nos olhos, que o filho pequeno do dono da outra escolinha, que ficava a poucas ruas de distância, havia acabado de morrer afogado no estabelecimento do pai. Os jornais deram os detalhes no dia seguinte. Num descuido de um segundo, enquanto os professores tomavam um café na salinha destinada a eles, o menino, que por ser da casa circulava com certa liberdade, resolveu dar mais um mergulho para se refrescar. Foi encontrado pelo pai no fundo da piscina já sem vida. Nunca me esqueci da sensação que aquela notícia produziu em minha cabeça ainda em formação. Em um segundo, uma pessoa que batalhava e compartilhava com os outros um tipo de saber nobre e especial não só havia perdido seu trabalho, sua fonte de renda e o eixo de sua vida profissional, mas seu filho de 3 ou 4 anos de idade.
A ideia de que a condição humana se resume à eterna administração do imponderável é tão assustadora quanto reconfortante. Saber que, num átimo, tudo pode migrar de um extremo ao outro pode mesmo nos ensinar a relaxar e deixar o fluxo das coisas seguir seu rumo sem que briguemos com ele. Ou pode acelerar um processo, que talvez seja mesmo inexorável, de loucura, fruto da tentativa alucinada de prever e domar todas as 100 mil alternativas de riscos a que estamos expostos e de fechar todas as frentes de erros e de problemas que possam vir a aparecer pela proa.
BÁRBARA E PAULA
Um acidente desfigura o rosto da modelo Bárbara Paz, doenças levam sua família, anos mais tarde ela encara e ganha o reality-show Casa dos artistas e algum tempo depois é premiada como uma das grandes atrizes de sua geração, enquanto atua na linha de frente da novela das 8. Que biografia é essa que revela uma vida pontuada por mudanças e acontecimentos fortes, sucessos escancarados, desavenças, amores, separações, sociedades, rupturas, e de repente, não bastasse tudo isso, sua protagonista Paula Lavigne se vê, ou se coloca, no meio de um furacão midiático, apanhando e batendo para todo lado? Como ela própria diz, sua vida não será mais a mesma depois dos episódios que chacoalharam sua existência nos últimos meses. E, ainda, em que momento específico as pessoas que homenageamos no Trip Transformadores foram, elas mesmas, transformadas? O que houve exatamente para que suas histórias dessem as guinadas que deram?
Em plena virada de ano, esta edição da Trip se propõe a olhar para o imponderável, para aquilo que pode pegar qualquer um de nós daqui a um minuto. Uma mudança radical de verdade. Independente de acharmos que estamos ou não preparados. De ser ou não ano-novo. Porque é assim que funciona.
PAULO LIMA, EDITOR