O Pacotinho Azul
Quando ela me entregou aquele pacotinho azul nas mãos foi como se a vida, mais uma vez, me protegesse de mim mesmo. Dentro havia um serzinho todo vermelho dormindo a paz dos anjos. Era a primeira vez em minha vida em que eu era responsável por alguém. Algo em mim estremeceu e ele acordou assustadinho. Escapou do cobertor azul e de meus braços como um sabão, jogando-se para o alto. Ele já ia mergulhando de cabeça e até hoje não sei como consegui apará-lo, ali na descendente, quase chegando ao chão de concreto daquela prisão. Foi o meu milagre. Algo protegia a nós dois e me fez reagir com um reflexo desses inexplicáveis pelas leis da física. Aparei, equilibrei e o devolvi à mãe que o envolveu assustada. Encostei no paredão que dividia o pavilhão nove do pavilhão oito da extinta Casa de Detenção, as pernas me faltaram e fui arreando ao chão totalmente exaurido. Acho que foi ali que comecei a sofrer de arritmia cardíaca. Um tambor sacudia meu peito, a respiração me faltou e o pensamento voou para longe de mim. Foi a única vez em minha vida em que não pensei nada, fiquei ali esvaziado.
Outro dia o Pacotinho Azul completou 20 anos. Esta quase um palmo mais alto que eu, é um rapaz bonito com aquele olhos grandes de menino. Usa um cavanhaque e esta fazendo duas faculdades. Conversa como um homem, com a voz engrossada e grave. Eu olho e tudo em mim se invade de doce ternura; é o meu menino, meu sonho, minha vida. E ele não sabe, sequer percebe o quanto eu o amo e tudo o que fiz de minha vida desde que o vi pela primeira vez. Nunca mais pude ser eu mesmo. Nunca mais pude decidir nada por mim, sempre fui eu e ele e cada vez que pensei em mim depois me doeu por não ter lembrado dele. Nunca mais me permiti enlouquecer, nunca mais pude mandar tudo pra puta que o pariu e sair para me viver. A cada erro sua figurinha amada se impunha a meus olhos interiores a exigir coerência e sensatez. Eu o adorei a cada passo, a cada respiração de meu peito.
Confesso que errei muito, mas também afirmo que sempre quis acertar porque ele existia. Sempre existiu dentro de mim e foi dominante, nunca mais consegui deslocar meus sentimentos centralizados nele. As mulheres reclamaram mas não pude amar ninguém mais do que a ele. Fiquei ferido de morte quando senti que ele não me amava como eu a ele. Que eu não importava para ele. Andei até chorando pelos cantos sem que ninguém soubesse. E não conseguia impor-me a ele, queria que somente o que fosse espontâneo nele. Fiquei tão machucado que comecei a me defender: se não me amava eu também não devia amá-lo tanto. Tentei substituí-lo, em desespero; varrê-lo de meu coração de tanta dor. Enchia a cara e amortecia, anestesiado. Com o tempo foi funcionando; eu já vivia sem ele, conseguia até não doer, mas não conseguia ser feliz com isso.
Somente quando desabafei com amigos a minha dor é que, escutando-os, pude compreender. A vida era dele, tinha até o direito de não me amar como eu o amava. Aos poucos eu fui me apropriando de um conhecimento que resolvia a questão. O amor não podia ser somente aquele tumulto que abalava meus sentidos. Ele devia, antes de tudo ser fiel a si mesmo, mesmo que isso significasse angústia para mim. Eu havia feito o mesmo com minha mãe. Ela reclamava que eu não a amava, que a fazia sofrer porque não me dedicava e vivia minha própria vida. Eu o havia criado para que fosse um ser livre para viver todos os seus possíveis, mesmo aqueles que não estavam em mim viver. Aos poucos fui entendendo que o maior risco era viver sem riscos e que o afastamento dele era necessário para que pudesse viver a si mesmo. Tentei o impossível e atingi o possível entendimento; a vida voltou a fazer sentido. Eu torceria por ele, vibraria com suas conquistas e o apoiaria em suas derrotas e fracassos, sem cobrar, sem querer nada em troca.
Pronto, eu estava livre para amá-lo e aceitá-lo sempre, fosse como fosse. Embora sempre o visse como aquele pacotinho azul que me fora dado de presente pela vida.
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Luiz Mendes
22/05/2015.