O Guru Acidental
Como Augusto Cury se tornou o escritor mais lido do Brasil
Como Augusto Cury se tornou o escritor mais lido do Brasil – e, no caminho, foi desafiado para um duelo de vendas por Paulo Coelho e apontado como o guru de Dunga e Marina Silva – sem que ninguém saiba exatamente de onde ele veio e quem ele é.
Um tipo comum com cerca de 50 anos, moreno de olhos ligeiramente puxados, óculos de aros finos e um pouco acima do peso, vai a uma livraria Fnac de São Paulo. Na hora de pagar um livro, aproveita para perguntar à caixa:
– Como estão as vendas dos livros do Augusto Cury?
– Ah, estão vendendo como água.
– Muito prazer, eu sou o autor.
– Você está brincando!
Ela ri e se vira para uma companheira:
– Ele está dizendo que é o Augusto Cury!
A outra também duvida e desafia:
– Ah, não é verdade. O Augusto Cury mora em outro país. Mostra seu passaporte.
Ele desiste:
– Brincadeira, não sou o Augusto Cury.
Antes que elas vissem a foto na orelha de um livro do escritor, e entendessem que o sujeito falava a verdade, ele já havia desaparecido.
Uns preveem o futuro. Outros falam com os mortos. Durante dez anos, Augusto Cury teve o dom da invisibilidade.
DAS SOMBRAS PARA A LUZ
A Folha de S. Paulo cravou no ano passado que Cury é “o autor de maior sucesso comercial do Brasil nesta década, com mais de 10 milhões de livros vendidos” (11 milhões, pelas contas atualizadas de suas editoras). Ele é publicado em 50 países, ganhou um dos principais prêmios literários da China, existe um Centro de Estudos Augusto Cury em Portugal, e sua obra é objeto de pós-graduação em universidades do Brasil e dos Estados Unidos.
Até pouco tempo atrás, por uma mistura de gosto (do autor) pelo anonimato e preconceito (da imprensa) contra a autoajuda, Cury raramente era reconhecido ou abordado nas ruas, e seu nome só aparecia na imprensa na lista de best-sellers. Nos últimos tempos, porém, Cury foi obrigado a sair das sombras para os holofotes. Depois de ter sido desafiado publicamente por Paulo Coelho para um duelo de vendagens, ele foi apontado – em ano de Copa e de eleição – como o guru de Dunga, técnico da seleção, e de Marina Silva, candidata a presidente pelo Partido Verde. Ao vir a público para negar os boatos, ele se tornou visível – muito visível. Mas ainda absolutamente desconhecido.
ESCOLHAM SUAS ARMAS
Augusto Jorge Cury nunca foi parceiro Raul Seixas e Rita Lee. Nunca tomou drogas, não foi internado em clínicas psiquiátricas nem praticou alquimia. Não tem apartamento na avenida Atlântica nem casa nos Pirineus franceses. Não foi disputado a tapa por Hollywood nem imortalizado pela Academia Brasileira de Letras. Nunca discursou no Fórum Econômico Mundial em Davos nem foi paparicado por Bill Clinton e outros líderes globais.
Ele gosta de “música relaxante”. Formou-se em medicina e psiquiatria em São José do Rio Preto. Vive com a mulher e as três filhas num sítio em Colina, cidade de 17 mil habitantes do interior de São Paulo, onde ele nasceu, conhecida como a Capital Nacional do Cavalo. No tempo livre, dá de mamar a carneirinhos e abraça árvores. Um de seus livros está virando roteiro de cinema nas mãos de Paulo Betti, outro será uma peça de Mauro Mendonça. Perguntado sobre quem seriam as pessoas célebres que admiram sua obra, primeiro se esquiva, depois diz, com um sorriso satisfeito, que pode revelar um nome: “Donna Summer”.
E, ainda assim, Augusto Cury incomoda Paulo Coelho. Depois de uma reportagem da Veja online, em que vários entrevistados do mercado editorial sustentavam que o primeiro autor vendeu mais que o segundo no Brasil nos últimos dez anos, o Mago escreveu para um blogueiro da revista: “Acho bem pouco provável que o Augusto Cury tenha vendido ‘quase’ 10 milhões de livros em dez anos. Mas posso estar enganado. Eu e todo o mercado livreiro, que está rindo dos números fornecidos. (…) Fica aqui um desafio cavalheiresco: eu me proponho a solicitar a meus editores todas as notas fiscais durante estes dez anos. Chegaremos a 9,2 milhões de exemplares vendidos. Ponho minha mão no fogo. Augusto Cury, autor que merece credibilidade até prova ao contrário, fará o mesmo para provar?”.
Em entrevista à Trip em Sorocaba, Cury disse não ao duelo: “Eu nunca estabeleci essa competição. Porque, para mim, a paranoia de ser o número um é sintoma de uma sociedade doente. Essa disputa não contribui com a sociedade, ela não estimula a arte de pensar. Foi uma situação constrangedora, e eu optei pela oração dos sábios: o silêncio”.
Procurado por meio de sua assessoria, Paulo Coelho não se manifestou. E, então, convocamos para arbitrar a polêmica outro best-seller, Lair Ribeiro, autor de O sucesso não ocorre por acaso: “Todo autor, toda editora joga os números um pouco pra cima. Não é só o Augusto Cury, não. Quando eu vendia mais que o Paulo Coelho, nos anos 90, ele dizia que era o autor mais vendido”, afirma.
Com uma aparição no Guinness World Records, por ser o único autor do mundo a ter seis livros entre os dez mais vendidos de um país simultaneamente, entre 1995 e 1996, Lair Ribeiro abandonou a literatura e hoje dá palestras para médicos. “É como no surf. Você tem que saber a hora de entrar e de sair da onda. Eu tive a minha e acabou.” E a onda de Cury, quanto vai durar? “Espero que dure bastante. Mas não há onda que nunca acabe.”
O ATAQUE DAS JANELAS KILLER
Nascido em Colina em 1958, filho de um advogado e de uma dona de casa, Cury conta que teve uma infância modesta. Chegou a dividir um cômodo com os pais e os cinco irmãos. E era o segundo pior aluno da sua turma na escola. Mas, com o incentivo do pai, chegou à faculdade de medicina, onde conheceu a mulher, Suleima, e teve uma crise de depressão. “É a experiência mais dolorosa da psique humana, o último estágio da dor. Só sabe quem tem. Isso tudo me arremessou para dentro de mim e me fez perceber que a dor ou nos constrói ou nos destrói.”
No caso de Cury, construiu. Ele saiu da depressão escrevendo obsessivamente. Foram 3 mil páginas ao longo de 25 anos. Enquanto clinicava como psiquiatra, construía a teoria-base de sua obra: a Inteligência Multifocal, que dá título a seu primeiro livro, em 1998. Na capa, ela é definida como “uma teoria revolucionária sobre o funcionamento da mente, capaz de causar grande impacto na Ciência”.
Grosso modo, a teoria defende que acessamos nossa memória através de janelas que podem ser negativas, traumáticas (as janelas “killer”, expressão mais usada por Cury em nossa conversa); ou positivas, saudáveis (as janelas “light”). O psiquiatra propõe maneiras de controlar as janelas assassinas para que sua abertura repentina não leve a reações violentas. Segundo ele, uma killer pode arruinar a vida de uma pessoa em questão de segundos.
"Não quero competir com Paulo Coelho. a paranóia de ser o número um é sintoma de uma sociedade doente"
Depois da publicação de Inteligência multifocal, Cury achou que deveria “democratizar” sua teoria simplificando seus conceitos em uma série de livros focado em diferentes temas. E aí ele começou a produzir best-sellers em série: Nunca desista de seus sonhos, Pais brilhantes, professores fascinantes, Seja líder de si mesmo, Dez leis para ser feliz, Doze semanas para mudar uma vida. Depois enveredou, com igual sucesso, pela ficção em obras como O vendedor de sonhos e O futuro da humanidade.
Os livros têm título de autoajuda, capa de autoajuda, pegada de autoajuda. Mas, segundo Cury, não são autoajuda. “Não defino meus livros assim porque eles têm na base uma nova teoria sobre o funcionamento da mente. Há uma diferença muito grande em relação aos livros de autoajuda, que não resistem ao calor dos problemas da segunda-feira. Nos meus livros, não há mensagens positivas, motivacionais, e sim críticas contundentes. Eu critico, por exemplo, o sistema educacional, embora considere os professores poetas da vida. Para mim, nossa educação está doente, formando pessoas doentes para uma sociedade doente.”
DUNGA, O POETA DA VIDA
Cury está decidido a fazer sua parte para curar a sociedade – e não apenas com livros. Se filiou ao Partido Verde ano passado. Suas filhas choraram, pediram que o pai ficasse longe da política, mas ele não voltou atrás. “Eu estou muito preocupado com as atrocidades que nós temos cometido neste belo planeta azul. Um bom ser humano se preocupa com seu povo. Mas um excelente ser humano deveria ter um caso de amor com a espécie humana.”
A filiação de Cury se deu no mesmo dia da de Marina Silva. Logo ele foi apresentado pela imprensa como guru da candidata a presidente. A assessoria da candidata teve que vir a público para negar a associação. “A maneira como a história saiu nos jornais me deixou constrangido. Não é verdade que eu seja guru de Marina. Sou apenas um amigo que torce por ela.” Mas Cury revela que aceitou colaborar no projeto de educação da candidata. E que foi convidado pelo PV para se lançar a senador – e até mesmo sondado, por alguns membros do partido, para uma eventual candidatura a governador de São Paulo. “Disse que não havia possibilidade. Não sou político, sou um semeador de ideias.”
Depois de se esforçar para negar os boatos de que seria guru de Marina, Cury teve que fazer o mesmo em relação à seleção brasileira. Os jogadores foram flagrados com os livros do escritor, dados pelo técnico e pelo auxiliar Jorginho; em um pulo, ele virou o “guru de Dunga”. Cury foi ao Fantástico, em uma de suas poucas aparições na TV, para renegar o rótulo (e, de quebra, classificar Dunga como um “poeta da vida”).
Para a Trip, o escritor conta que deu uma palestra para os jogadores e pediu segredo à CBF, mas a história vazou quando ele foi fotografado na concentração em Curitiba às vésperas para o embarque para a África do Sul. “Eu não sou um profissional de motivação. Fui falar sobre o funcionamento da mente e a formação do eu como líder da psique. E dei algumas ferramentas para que eles possam lidar com os estímulos estressantes, um passe errado, uma provocação de um jogador, uma vaia da torcida. No futebol, céu e inferno estão muito próximos, 5 s podem ser o carrasco de 90 min.”
"Cury venceu a barreira da classe C. Seus livros são oferecidos pelas vendedoras da Avon"
AVON CHAMA
O sucesso de Cury é um mistério até para o psiquiatra. “Não tenho exposição na mídia, não faço propaganda. Mas os livros devem contribuir com as pessoas, porque geram uma reação em cadeia. Um fala para dez, dez falam para cem e assim por diante. Não escrevo para fazer sucesso. Escrevo para que as pessoas se tornem viajantes dentro delas mesmas, para que se tornem autoras da sua própria história.”
César González, diretor geral da Planeta no Brasil (editora que publica parte de sua obra), arrisca uma explicação. “Acho que Cury transmite uma teoria muito complexa de uma forma extremamente simples.” O editor revela mais um dado para ajudar a desvendar o mistério. “Ele ultrapassou a faixa dos leitores habituais e chegou à dos não habituais. Venceu a barreira da classe C. Poucos conseguem. Seus livros são comercializados pelas vendedoras da Avon, principalmente no Norte e Nordeste.”
Mas existe uma outra barreira que Cury ainda não venceu: a da crítica literária. Em uma consulta informal a dez jornalistas sobre o escritor (incluindo três críticos), apenas um soube responder de quem se tratava, e nenhum o havia lido. Adriano Schwartz, professor de literatura da USP e colaborador da Folha de S.Paulo, se dispôs a receber duas obras de Cury: Nunca desista de seus sonhos e O vendedor de sonhos: O chamado.
Ressaltando que só conseguiu ler uma parte de cada livro e que não gostaria de fazer um julgamento definitivo, Schwartz analisa: “O livro de ficção [O vendedor] parece autoajuda, e o de autoajuda é uma ficção, já que anuncia uma sabedoria que não se concretiza, promete uma vida melhor sem meios para alcançá-la. No geral, ele é menos místico que Paulo Coelho, mas ainda mais constrangedor, pela quantidade de clichês por página. A linguagem tem um rebuscamento antiquado, com palavras desgastadas que talvez soem como grande literatura para quem lê pouco. Entre os milhares de livros ruins que são lançados todos os anos, é difícil entender por que justamente esses fazem sucesso”.
MANTRAS CIENTIFICISTAS
Salão do Lar Escola Monteiro Lobato, Sorocaba, 27 de maio. Quase mil pessoas se reúnem para uma conferência de Augusto Cury, pagando R$ 65 de ingresso. Mais de uma centena compra livros na entrada para pedir autógrafo do autor. Cury conta que é convidado para cerca de cem palestras por mês, mas só diz sim para três ou quatro. Não revela quanto ganha por elas nem por seus livros. Mas diz que investe seus ganhos em um projeto de reflorestamento em Minas Gerais.
“Com muita humildade, quero me curvar diante de plateia tão inteligente”, ele começa, antes de literalmente se curvar. Cury alterna perguntas simples (“quem de vocês se sente complicado às vezes?”, “quem aí já foi traído?”) e expressões difíceis (“Registro Automático da Memória”, “Síndrome do Pensamento Acelerado”) – que ele pede para a plateia repetir e que soam como estranhos mantras cientificistas.
Cury diz que não segue nenhuma religião e conta que já foi “um dos maiores ateus que já pisaram nesta terra”. “Fui mais ateu do que Nietzsche, que escreveu sobre a morte de Deus. Talvez mais do que Marx, que disse que Deus era o ópio da mente humana. Mais do que Sartre e Freud, que consideram a busca por Deus como a busca de um pai protetor. E como Diderot, que no afã do ateísmo queria eliminar todos os religiosos. Claro, eu não era tão agressivo, mas tinha uma posição contundente.”
"Já fui um dos maiores ateus que pisaram na terra. Mas hoje me considero um cristão sem fronteiras"
Ele mudou de ideia ao pesquisar a vida de Jesus Cristo, especialmente sua reação à traição de Judas. “Nunca na história uma pessoa traída tratou com tanta dignidade um traidor, indicando que ele foi o maior educador da história. Infelizmente, Judas entrou em uma sequência de janelas killers e atentou contra a própria vida. Ao estudar a inteligência do Cristo, romperam-se as armaduras do meu orgulho. A partir daí, eu me tornei alguém que crê em Deus, um cristão sem fronteiras”.
NEPOTISMO
No dia seguinte a Sorocaba, Cury nos recebe na sede da editora Planeta em São Paulo para as fotos. Faz questão de autografar um livro para o fotógrafo (dedica ao “poeta da imagem”), um para este repórter (“uma mente brilhante”), outro para minha mulher e filhas (“vocês formam uma linda família”) e o último para minha mãe (“você é encantadora”). Conto que meu sobrenome do meio é Cury e que, com certa frequência, me perguntam se sou seu parente – em geral, quando falo meu RG para gerentes de lojas, caixas de supermercados ou atendentes de telemarketing. Mas, não, ele não é meu tio rico. Cury é sobrenome árabe comum, um “Souza” dos libaneses. Apropriadamente ou não, quer dizer “padre” (ou cura).
O escritor confessa que imaginava que a rara entrevista que me concedeu era, na verdade, para a revista de bordo da Trip Linhas Aéreas. Antes de se despedir, ele recomenda: “Escreva um livro. Eu posso te ajudar com uns contatos. Esse mercado não é fácil. Nunca desista de seus sonhos”.
Créditos
Imagem principal: Augusto Cury / Divulgação