O filósofo do hiperconsumismo

O francês Gilles Lipovetsky falou na quarta para uma plateia seleta em evento promovido pela Trip

por Redação em

Há quem não veja muito espaço, ou utilidade, para a filosofia em um mundo tão cheio de opções. Quando se trabalha tanto, quando se tem 170 canais a cabo, quando seu Twitter pia o dia todo no celular, quem tem tempo para duas horas diretas sobre a análise da paradoxal sociedade de hiperconsumo? Na noite de quarta-feira, pelo menos 140 pessoas tinham. Em um evento promovido pela Trip em parceria com o Manioca, o espaço de eventos do restaurante Mani, o filósofo francês Gilles Lipovetsky falou a uma plateia de convidados sobre sua interpretação da sociedade de nossos dias.

O professor Lipovetsky é dos mais relevantes e provocativos pensadores da cultura contemporânea. Analisando alguns dos fenômenos mais importantes das últimas décadas, ele esbarra em temas que normalmente passam longe dos olhos dos filósofos: marcas, luxo, consumismo, redes sociais e as consequências emocionais de um mundo pós-pós-moderno. Uma época que ele batizou como hipermoderna se manifesta mais claramente no que Lipovetsky chama de hiperconsumismo. Um termo que pode enganar... hiperconsumismo não significa exatamente consumo exagerado, compulsivo. É algo mais sutil, e mais relevante, do que frenesis em shopping centers. Trata-se de uma mudança crucial no padrão e nas motivações do consumo humano.

Culto às marcas

De acordo com Gilles, “a sociedade de consumo, comumente definida a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, era definida pelo consumo semicoletivo. A família comprava bens para o uso coletivo em casa. Uma TV, um carro, uma linha telefônica eram itens de desejo e status”. O que se vê a partir dos anos 70, mas que acelerou vertiginosamente a partir dos anos 80, sob a tutela americana de Ronald Reagan, foi o consumo dirigido quase que exclusivamente ao indivíduo. “Uma TV, um carro, um telefone por pessoa. E mais do que isso. Um culto às marcas e um desejo coletivo, que transcende classes sociais, por artigos e símbolos que denotem luxo.” Tudo, de acordo com Lipovetsky, para adular o indivíduo que volta suas paixões para si mesmo, seu ego e seu conforto, em um mundo de ideologias coletivas arruinadas.

"Vivemos em uma sociedade paradoxal, que não se equilibra facilmente entre o materialismo e a espiritualidade"

O professor analisa como esse fenômeno transformou as marcas em entidades onipresentes e como essa prioridade ao indivíduo serve aos interesses competitivos do mercado – e moldou, assim, uma nova cultura no trabalho, que demanda mais investimento emocional das pessoas e que contribui para o muito bem conhecido nível de ansiedade, tristeza e venda de antidepressivos neste começo de século. E é aí, através dessa infelicidade hiperconsumista, que Gilles faz sua mais contundente análise. A da relação entre felicidade e nossos hábitos. Entre a obsessão em produzir sensações constantes de bem-estar e boa autoestima com nosso estranho fracasso em obtê-los mesmo em um mundo em franco progresso.

Brasil, um laboratório exemplar

“Trocamos o status pelo consumo como uma experiência emocional. E não acho isso necessariamente ruim. O problema é que o consumo e o mercado se tornaram objetivos em si. E não existe felicidade dentro de um paradigma egoísta, individualista e fora das relações humanas”, vaticina diante da heterogênea plateia. Esportistas de ponta como o big rider Carlos Burle e o snowboarder Felipe Mota, empresários como Álvaro Coelho da Fonseca, João Paulo e Pedro Paulo Diniz, artistas como Fernanda Lima, publicitários como Marcelo Serpa, João Farkas e Fran Abreu, são apenas alguns nomes que lotaram o espaço Manioca. Ouvidos diversos e atentos às palavras do professor: “Vivemos em uma sociedade paradoxal, que não se equilibra facilmente entre o materialismo e a espiritualidade. Entre a ideia bem difundida de que a felicidade é uma conquista interna e a projeção de nossos desejos em objetos e marcas.”

E se é o paradoxo que melhor define os tempos hipermodernos, para Gilles o Brasil é um laboratório exemplar para suas teses. “A enorme distância entre as classes e uma cultura que congrega tantos elementos consumistas e espirituais, que se inseriu de modo muito acelerado na sociedade de consumo, faz do Brasil um lugar muito significativo, onde a análise que proponho está clara”, ele diz em resposta a uma pergunta da plateia no fim de sua exposição. E conclui sua complexa coleção de argumentos com uma posologia mezzo filosófica, mezzo espiritual. “Precisamos criar novas paixões para conter a paixão consumista. Oferecer objetivos para mobilizar emoções além do consumo. O mercado não é ruim. Mas o culto do mercado apenas é o demônio”, pregou o papa da hipermodernidade.

Crédito: Emana Imagem & Cultura
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