O evangelho segundo JC
Muitos dizem que ele não existe. Enquanto isso, Jorge Cardoso, o carioca que foi para a neve fugindo do diabo, põe na praça outro livro perturbador
Jorge Cardoso no convidativo terreno atrás de seu prédio. Abaixo, capa do livro
Por Ronaldo Bressane
“Saí do Brasil em novembro de 1996. Durante os anos 90 escutava um rádio dentro da cabeça, acho escroto falar disso, porque pode parecer esquizofrenia, mas não, estava travando uma batalha espiritual e já tinha passado por três faculdades, biologia, história da arte...
Bom, sem dormir há uma semana, caminhando pelas ruas de Niterói noite adentro resolvi me entregar a um hospício: mas o manicômio de Jurujuba estava fechado, liguei para um amigo, bebemos cachaça, arrombamos a porta, cachorros nos atacaram, a polícia nos apanhou.
Três dias depois ingressaria na faculdade de filosofia, alimentado por doses de Equilid 50. Então, tive uma visão da minha morte em uma quarta-feira de cinzas. Não queria morrer perto dos meus pais, assim decidi morrer longe – os elefantes já faziam isso. Então, como que amparado pelo braço, saí do Brasil e fui para o Marrocos.” Desse jeito o carioca Jorge Cardoso começa a narrar seu périplo pelo mundo. Esqueça os escritores-de-escrivaninha: JC é um legítimo beatniquim, herdeiro brasuca dos Jacks London e Kerouac na volúpia da vagabundagem. O autor do estranho e elogiado Mal pela Raiz (Baleia) tinha pouco mais de 20 anos quando saiu do país – hoje, aos 33, vive em Umeå, cidade nos confins da Suécia.
Entre o norte africano e a Escandinávia, JC errou durante anos por Argélia, Espanha, EUA, Islândia – onde conheceu a mãe de seu filho Noah –, Inglaterra, Alemanha, Bélgica e França. Empregos: empacotador de peixes, enfermeiro de manicômio, boxeador de rua, bookmaker de corridas de cachorro e roteirista de curtas-metragens. “Hoje, faço bicos estúpidos, deprimentes, sujos: trabalho em hospícios, dou aulas de português e inglês...”, conta à Trip, por e-mail. Tudo isso faz com que sua própria existência seja volta e meia colocada em questão. Não à toa: a floresta onde fica o prédio onde mora (sem calefação, o que barateia o aluguel) comunica-se com as matas da Lapônia. Sim, a terra de Santa Klaus.
Sua odisséia entre céu e inferno está contada em Um Cavalo no Cemitério de Deus, bizarro relato autobiográfico que a curitibana AtritoArt lança no próximo mês. Além deste, JC, que junta na mesma platéia um acadêmico como José Castello e um dramaturgo outsider como Mário Bortolotto (que adapta seus contos para uma encenação), traduz sagas escandinavas para o português e prepara uma recriação do Velho Testamento. A Bíblia é o livro de cabeceira deste exu das letras. Toda sua vertiginosa escrita, redigida no ritmo de quem vai tirar o pai do cadafalso e perfurada por elipses, violentas interrupções, imagens nonsense e gírias em sueco, inglês, árabe, espanhol e até português, ocupa-se em colocar a alma do homem em xeque. Povoam seus cabulosos causos terroristas, assassinos, santos, ladrões. E outros seres possuídos por um furor divino ou demoníaco – como, no fundo, todo filho de Deus.
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