O ciclista é o pato

Caramuru: "Não vale falar nas ciclovias abertas aos domingos. Que as bicicletas imperem"

por André Caramuru Aubert em

Não vale falar nas bobinhas ciclovias abertas aos domingos, como São Paulo tem feito. Que seja como Amsterdã, onde as bicicletas imperam

No mundo acelerado e maluco em que vivemos, bicicleta se transformou em sinônimo de coisas boas, tais como “calma”, “transporte ecologicamente correto”, “contato com a natureza”, “interação com outras pessoas” e assim por diante. Enquanto ideia ela hoje se opõe, portanto, a coisas “más”, como “automóvel”, “poluição”, “individualismo” etc. É curioso como conceitos mudam; essa história nem sempre foi assim. A bicicleta foi um item importante para a expansão industrial, servindo como laboratório para um modelo de produção em linha que ficaria famoso com a Ford alguns anos depois. Mais ainda, credita-se à indústria da bicicleta (originalmente consumida mais pelas elites do que por camadas populares) a invenção do conceito de obsolescência programada, essa praga de nossos tempos, que faz com que você “precise” trocar um produto antes que ele fique velho, apenas pelo fato de que um modelo teoricamente mais moderno foi lançado (dedico este trecho às milhares de pessoas que, no mundo todo, ficaram horas na fila à espera do iPad 2, e especialmente ao estudante chinês que vendeu um rim para comprar o seu).

Fora a economia, a ecologia com relação à bicicleta também era outra. Num artigo para um pequeno jornal inglês em 1910, meu bisavô Charles escreveu que “a bicicleta e o automóvel têm fascinado os homens por sua velocidade e os seduzido por sua praticidade, até o ponto em que o gosto pelas caminhadas desapareceu”. O texto, não preciso dizer, enaltecia os prazeres de andar a pé. Meu bisavô seguia uma tendência comum na época. Ele era fã de Richard Jefferies (1848-1887), escritor naturalista muito conhecido na Inglaterra vitoriana e, mais recentemente, redescoberto como um dos pioneiros do pensamento ecológico. Jefferies escreveu que só se conhece realmente um lugar a pé. Ele não era particularmente contra o “progresso” ou as bicicletas, apenas defendia, naqueles anos de industrialização e urbanização crescentes, que se buscasse um modo de vida mais “natural”, e punha a bicicleta no mesmo cesto em que estavam outros aceleradores e poluidores da vida, como máquinas a carvão, telégrafos e automóveis. Além de ter uma escrita saborosa, Jefferies impressiona pela atualidade, em nossos dias de hiperconsumo e hiperpoluição (sua obra pode ser baixada grátis neste link).

Império da bike

Se no século 19 a bicicleta representava acelerar a vida, hoje, quando andamos muito mais rápido e produzindo muito mais fumaça, ela passou a significar desaceleração. Para as grandes cidades do Brasil e do mundo ela poderia se transformar, com investimentos relativamente baixos, numa alternativa atraente para melhorar o transporte, o trânsito, a qualidade do ar e a saúde das pessoas. Os poderes públicos não investem mais nisso por pura inépcia. Nas grandes cidades, usar bicicleta no dia a dia é tão seguro quanto a caça ao pato, em que o pato é o ciclista. E não vale falar nas bobinhas ciclovias abertas aos domingos, como a cidade de São Paulo tem feito. Se é para seguir um modelo, que seja o de lugares como Amsterdã, onde as bicicletas imperam. Pergunta rápida: quanto custa um quilômetro de ciclovia comparado, por exemplo, a um de metrô? Outra: quantas bicicletas cabem, na rua, no espaço ocupado por um carro? Mas eu, que adoro caminhar e sempre que posso me desloco usando apenas os pés (o mais antigo e barato meio de transporte que existe), não jogaria no lixo, assim sem mais nem menos, a visão de meu bisavô e de seu guru Richard Jefferies. E pergunto: manter as calçadas limpas, seguras e confortáveis para os pedestres não seria ainda mais fácil do que construir ciclovias? Afinal, elas já estão prontas.

*André Caramuru Aubert, 48, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br

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